RAPUNZEL

(De offshore a offroad em 21 anos)

Todo velejador, como eu mesmo, já leu TODOS os livros de viagens em que conseguiu por as mãos, freqüentou mil e uma palestras, vagou horas pelos salões náuticos da vida e conhecem de cor todas as historias do mundo náutico. O mar sempre foi um motivo de admiração e temor que fascina.

O que é curioso é que todos os relatos invariavelmente terminam com o fim da viagem, um final feliz tendo como cenário a marina ou Iate clube de origem, abraços dos amigos e parentes, e talvez uma reportagem na revista de náutica da região registre esse dia com uma matéria que deixa todo mundo com água na boca...

Depois, eventualmente um livro, uma palestra, ou um encontro casual por ai nos trazem a memória aquelas pessoas que tanto nos fascinaram com suas andanças, ou inspiraram novos projetos.

Aí, um belo dia ... os protagonistas daquelas viagens maravilhosas somem, somem do mar, somem da mídia...somem! Resta sempre a dúvida: "o que será que foi feito deles?"

Conheço apenas um livro no qual se conta o que o velejador fez da vida após desembarcar. É o relato da viagem de um adolescente americano (16 anos) que fez uma turbulenta volta ao mundo num veleiro de 23 pés chamado “DOVE” (Nome também do livro)  nos anos 70. Ao retornar foi morar numa montanha com a mulher que conheceu durante a viagem e jamais voltou a navegar. É uma historia que vale a pena ler.

Eu pessoalmente sempre tive a curiosidade de saber o que acontecia com as pessoas  e os barcos depois que realizavam a viagem de seus sonhos e voltavam para terra firme.

Bom, finalmente eu sei de mais uma história, a nossa! E saber é ter experimentado, todo o resto é mera informação, como eu costumo dizer.

Como alguns de nossos amigos  já sabem, vendemos o Rapunzel. Não é uma decisão fácil para qualquer um que tenha construído seu próprio barco e vivido tanto tempo a bordo. Voltar para terra firme, a essa altura,  é tão estranho quanto foi anos atrás a idéia de mudar para o barco!

É interessante, mas exatamente como nos falavam quando mudamos para bordo todo mundo diz:

 “...mas voltar a morar em terra firme? Como assim? Vocês? Que coisa mais estranha!!!”

E o que nós sentimos tambem era algo semelhante, como seria voltar depois de tanto tempo?

Embora tenhamos vivido sempre em contato com a “vida normal” o mundo mudou bastante nos últimos 20 anos. Vivendo no mar, na âncora como sempre vivemos, e valorizando a independência e auto-suficiência que aprendemos a curtir,  sempre tivemos o mínimo indispensável de  tecnologia e recursos que dependessem de apoio em terra, energia, comunicação constante e etc. Em resumo, a gente curtia o simples. Esse “conservadorismo” evidentemente nos tornou um pouco limitados e desatualizados ao longo do tempo. Mas mesmo isso para nós era  diversão, fazia parte do “pacote”.

Desembarcar portanto, representava voltar a um “mundo” inundado de tecnologia e agitação à qual certamente não estávamos acostumados. O que nos esperava em terra firme era tão incerto quanto o Oceano Pacifico ao cruzarmos o canal do Panamá...Iríamos conseguir continuar nosso ritmo tranquilo de vida, nossa auto-suficiência, nossa simplicidade?

Quando mudamos para o Rapunzel em 1991 já tínhamos uma opinião definida sobre até quando ficaríamos a bordo, e a idéia era viver a bordo enquanto tivéssemos a perspectiva de viajar. Para nós não fazia sentido viver em um barco só por ser “diferente” ou exótico, barcos são para viajar. Nós navegamos mais de cem mil milhas no Rapunzel.

Quando voltamos de nosso “giro pelo Atlântico”  em 2006 tínhamos planos de viajar novamente em 2010. Circunstancialmente não viajamos naquele ano. Deixamos para 2011, e quando nos demos conta...o ano estava quase no fim e não havíamos feito nada no sentido de zarpar novamente! Então começamos a ponderar sobre como estávamos vivendo, e de repente questionamos a conveniência de continuar a bordo.  Havíamos parado de viajar...

Então a idéia do desembarque foi crescendo apesar de jamais termos comentado sobre isso com os amigos. A gente mesmo não acreditava que estávamos pensando seriamente no assunto! Finalmente em 2012 decidimos. O barco estava impecável, havíamos preparado ele para viajar há pouco tempo, nós estávamos bem, com saúde e de bem com a vida. Era o momento ideal para a virada. Os filhos iriam adorar!

Na verdade, ao longo dos últimos dois ou três anos de nossa vida a bordo começamos a perceber que a liberdade que a vida a bordo representa, no fundo e sem notarmos, faz com que a gente vá deixando de curtir uma série de coisas importantes. De repente se olha para os lados e conclui até que se afastou demais e por muito tempo dessas coisas, e que elas agora começam a fazer falta!

Ou seja, descobre-se que apesar da vida a bordo ser cheia de atrativos e satisfação como o que experimentamos quando viajamos com os filhos, o barco vai se tornando ao longo do tempo um compromisso natural que limita a participação na vida familiar, nossas oportunidades, nossos assuntos de conversas, interesses etc.

Aquela frase em baixo de uma foto no inicio do nosso ultimo livro (UM GIRO PELO ATLÂNTICO) "Que liberdade é essa, que aprisiona a alma?", já era um avatar dessa realidade em 2007! O incrível é que ninguém jamais me perguntou por que coloquei aquela frase ali!

A gente curtiu muito viver no mar,  criamos "raízes" profundas na comunidade náutica. Descobrimos um mundo fantástico, cheio de gente interessante e amiga. Não acredito que vivendo em terra firme todos esses anos teríamos desfrutado de uma vida social tão intensa como a que curtimos nesses anos no Rapunzel. Algumas de nossas melhores lembranças são ligadas a momentos de pura magia como um nascer do sol iluminando as velas, depois o convés e enfim o mar. Outras vezes o mau humor das crianças ao serem acordadas no meio da noite para seus turnos, e as alegrias no fim de uma travessia com  uma nova ilha pronta para ser explorada à proa, a expectativa de reencontrar os amigos, uma sorveteria, pão fresco...

Agora queremos nos reaproximar de alguns velhos amigos, dos filhos e netos, curtir  coisas que deixamos para trás em função da ilusão de liberdade que a vida no mar inspira.

Apesar de navegarmos há quase 40 anos, sem dúvida os últimos 21 anos foram os melhores de nossas vidas. Decidimos voltar a viver em terra com a certeza de que havíamos realizado nossos sonhos, de que havíamos mostrado um mundo sem fronteiras a nossos filhos, e os preparado da melhor maneira possível para a vida. Com a venda do Rapunzel pudemos nos dedicar com afinco a planos que há muito tempo vínhamos cultivando, mas que eram sempre adiados pelo envolvimento nosso com a vida no mar.

Gosto de pensar que estamos embarcando em um novo projeto de vida  com tanto entusiasmo como quando iniciamos a fase Rapunzel em 1983, e com a certeza de que o futuro será igualmente feliz.

Embora tenhamos nos afastado do mar como moradia, não queremos nos afastar dos amigos que fizemos no mundo náutico. Continuaremos a acompanhar a vida no mar através da participação em eventos da comunidade e dos relatos de cruzeiristas, alguns dos quais sabemos que de alguma forma se inspiraram em nossos relatos, o que nos deixa lisongeados. Queremos continuar disponíveis àqueles que por afinidade ou necessidade de qualquer tipo de ajuda nos procurem.

E onde estamos agora? Foi difícil se desligar do barco? Sentimos saudade?

Uma vez em terra firme, nossa opção mais natural  foi nos mudarmos para uma pequena propriedade rural que mantemos há 36 anos na beira da represa de Igaratá, distante 15 quilômetros do centro de São Jose dos Campos, SP.  Morar numa cidade, mesmo que no interior, seria insuportável. Por isso há muito vínhamos investindo em nossa “cabana” de fim de semana para adaptá-la como moradia efetivamente. 

Sendo inteiramente de madeira, foi construída por nós no final dos anos setenta ( É, a gente tem essa mania de construir, reformar, restaurar há muito tempo!), parece muito com um barco, pequena, muito verniz, espaço bem aproveitado, e muita varanda, que chamamos de “cockpit”.

O nosso novo endereço é:

Rua Soita nº 7, Vertentes do Jaguari, São Jose dos Campos, SP

Infelizmente esse endereço é apenas ilustrativo, pois não tem CEP, a “rua” tem menos de 100 metros de comprimento e termina em nossa porteira! O correio não chega lá, nem sinal de telefonia comum ou de internet. É quase como morar na Ilha da Cotia, só que com o carro na plataforma de popa! Ou seja, se alguem quiser fazer uma visita tenho que mandar um mapinha de como chegar lá!

Mas para quem  até o ano passado, no “quesito” endereço se enquadrava legalmente no artigo 73 do Código Civil,  já é um grande progresso!

Art. 73. Ter-se-á por domicílio da pessoa natural, que não tenha residência habitual, o lugar onde for encontrada.

Bom, agora todos sabem onde nos encontrar pelo menos!

Eu sempre disse que barcos tem uma “alma”. Talvez fosse melhor dizer que emprestamos parte de nós mesmos para qualquer coisa a qual nos dediquemos tão intensamente. Ninguem pode dizer que é fácil vender sua casa quando você a construiu, ou seu barco. Quando vendemos ou nos desfazemos daquilo, tomamos de volta aquela parte emprestada, e com ela virá sempre um pouco de saudade.

Bem, vender o barco e mudar para terra firme, e daí... fazer o que?

Uma vez decidido que voltar para terra era o que queríamos, o mais difícil  realmente foi achar o que fazer depois de voltar para terra....A dúvida era "existe vida após o Rapunzel?" Não queríamos ficar simplesmente vendo a grama crescer sentados na varanda o resto da vida! Aliás, já descobrimos que grama é a “craca” de quem mora em uma chácara, menos mal que não precisa cortar ela em apnéia!

Como a Eneida sempre curtiu muito árvores, flores, plantas, cuidar da terra etc, para ela a perspectiva era a melhor possível. Temos mais de 120 espécies diferentes de arvores catalogadas em nossa propriedade, uma horta, pomar e todo o trabalho associado a esse “cuidar da terra”.

Para mim foi um pouco mais complicado, não sou muito ligado a esse tipo de agro-atividade, nem a criar galinhas ou porcos. Também não queria ficar, como disse o Vinicius de Morais numa entrevista, “...sentado ali, colecionando bengalas, limpando garruchas...”

Pode parecer estranho ir morar num sitio e não gostar de criação, de plantar, podar, colher, mas na verdade o que adoro é o isolamento da vida entre as árvores e o lago, longe de vizinhos, de transito...  Curto fazer parte da paisagem, gosto de mato, da desordem natural das coisas. Acho maravilhoso aquele silencio e escuridão absoluta das noites. É muito parecido com o que nos atraia na vida no mar.  Cecília Meireles descreve com precisão essa sensação de integração com o meio neste  poema:

 

                                               “MAR ABSOLUTO”


            Queremos a ilusão grande do mar,
            multiplicada em suas malhas de perigo.
            Queremos a sua solidão robusta,
            uma solidão para todos os lados,
            uma ausência humana que se opõe ao mesquinho formigar do mundo,
            e faz o tempo inteiriço, livre das lutas de cada dia.

                                                                                               Cecília Meireles

 

 Depois de muito pensar no que eu iria querer fazer, a grande  idéia surgiu. Investiria   num velho interesse meu, um sonho de adolescente engavetado por mais de cinco décadas:

Restaurar um veículo militar antigo. Quando criança me fascinavam os carros de combate que via nos desfiles militares de sete de setembro. Me impressionavam os pneus enormes, maiores do que eu... Sempre quis ter um monstrengo daqueles! Bom, nunca é tarde para realizar um sonho...

Tive então uma "recaída" para as minhas origens mecânicas. Fiz as pazes com a minha formação em engenharia mecânica, e encontrei um uso para as habilidades e ferramentas acumuladas em anos de manutenção a bordo. Motor diesel, ferrugem, elétrica, hidráulica, lixar, pintar, enfim uma grande “sarna pra me coçar”.  Com isso, o momento de colocar o primeiro anuncio de venda do barco ficou condicionado a eu encontrar primeiro o tal veículo para restaurar.

Em 2012 finalmente aconteceu, encontrei uma viatura Dodge M37 que se encaixou perfeitamente nos meus planos, que eram de fazer uma restauração, sem pretensões de colecionador, mais uma reconstrução, para usar o veículo em trilhas, offroad.

Com intenção costumeira de fazer as coisas simples, a idéia era manter distancia desse “boom” de tecnologia que embriaga o contexto atual como um todo e que tornou um simples carro, e alguns barcos, em “naves”  tão complexas e cheias de funções totalmente dispensáveis num veículo, que acabam dificultando seu uso como tal!  Um carro é um carro, um barco é um barco e pronto.  Quando eu quiser dar marcha a ré ainda posso muito bem virar a cabeça para trás e olhar para trás!

Enfim, o plano é um veículo totalmente mecânico, sem sofisticação alguma, sem câmaras, sensores, PCM's  ou controles especiais. Eu chamo essas coisas de “soluções complicadas para problemas já resolvidos...” Quero uma coisa sem frescura, que possa ser lavada com uma VAP por dentro e por fora sem medo de molhar uma CPU ou desconfigurar alguma aporrinhola eletrônica qualquer e ficar a pé! Algo construído com parafusos e porcas e que possa ser consertado com as mãos, um alicate e um pedaço de arame farpado, ou que possa em ultimo caso ser rebocado pelo pára-choque

A “viatura” é quase tão velha quanto eu. Tem algumas coisas para refazer sim, mas a idéia é essa, manter a cabeça e as mãos ocupadas por um bom tempo.

Ah sim! Quase ia esquecendo de falar do grande herói dessa história toda, o RAPUNZEL. Bem, depois de navegar por 25 anos entre os trópicos, o Rapunzel “agora sob nova direção”, está sendo preparado para as águas  geladas das altas latitudes. Boa sorte amigão!

Em 1983 fizemos nosso primeiro investimento no sentido de morar a bordo. Nem sabíamos ainda que barco iríamos construir, nem que roteiro seguiríamos ou quando viajaríamos. Mesmo assim comprei um sextante de verdade, um  Heath Hezzanith de bronze, e pensei, “...agora não tem volta, já começamos a gastar dinheiro nessa loucura!”

Ao mudarmos para terra firme tivemos a curiosidade e a paciência de medir quanto havíamos acumulado de tralha no barco em 21 anos. Foi assustador, desembarcamos mil e duzentos quilos de tralha do Rapunzel, encaixotados em sete metros cúbicos de caixas de papelão. Trinta anos depois de sua compra o sextante desembarcou numa dessas caixas, afinal é uma peça de museu, foi como tudo começou!

Agora sim, a história está completa...

Aproveito para agradecer aqueles que ao longo desses anos nos estimularam a ir em frente em nossos projetos, nos prestigiaram com sua atenção, se interessaram e muitas vezes se inspiraram em nossas publicações e palestras, e que nos tiveram tanta estima por todo esse tempo. Essa amizade e consideração são nossa melhor lembrança, e o que mais caro colhemos. Ficamos gratos em especial a nossos amigos do Estaleiro DINIEPER que embarcaram em nosso sonho e viabilizaram a construção do casco do Rapunzel, a família Console do estaleiro SUPMAR,  e ao Raymond das Tintas CONINCO, pela  consideração e apoio que nos dispensaram ao longo desses anos quando fazíamos manutenção do Rapunzel, e a todos os que de alguma forma nos ajudaram a construir essa história.

Um abração a todos,

 

Marçal & Eneida          *llll*                                                                                                                                                                                                           ~ ~-^~~^~--~