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Versão da Catarina

A ancoragem na Ilha do Campinho é mais selvagem, sem agito de cidade por perto. Em terra, formam-se pequenas praias para banho, que aparecem durante a maré baixa, com algumas faixas ocupadas por propriedades particulares. A correnteza no canal é tão forte que, muitas vezes, vence o vento, e o barco fica de lado para ele, o que prejudica a ventilação. Lá, ressuscitamos as telas mosqueteiras, para evitar a entrada das moscas durante o dia, e de pernilongos e muriçocas à tardinha, mas nada fora de controle, justificável pelo calor, e pela natureza à volta.
Ilha têm muitos restaurantes em suas margens, todos praticando o mesmo preço alto, por conta do verão. É a estação em que o pessoal ganha dinheiro, para sobreviver o resto do ano. O lugarejo é bem simples, com pequenas casas de alvenaria, sem calçadas; só mais para o lado que dá para Barra Grande é que se vêem casas maiores, assobradadas, de veraneio.
As casas mais rústicas ficam com portas e janelas abertas durante o dia, sendo possível ver quadros de São Jorge pendurados na parede, lutando com o dragão branco, na Lua; há, inclusive, uma igrejinha em sua homenagem. A devoção ao santo talvez se explique por ele representar um guerreiro, batalhador,
Prainha-em-Goió como tantos brasileiros. Já a Lua, onde ele habitaria, foi introduzida, dizem, pelos baianos, e faz sentido para o local, pois se o santo domina o astro, também cuida das marés, que regem toda a vida por aqui, e a nossa vida.
Após alguns dias ancorados na Ilha de Campinho, fomos até a cidade de Camamu, para abastecer o barco com perecíveis, no dia de feira na cidade, que é no sábado. Pegamos um barco que passa às 6:00 horas da manhã, e retorna para a Ilha por volta das 12:30 horas. No barco, muitos estão com cara de sono, algumas crianças até dormindo, cobertas por mantas. O trajeto levou cerca de uma hora e meia, foi mais longo por conta da maré baixa de sizígia, que obrigou o barqueiro a dar uma longa volta, para não encalhar. Sentei do lado de uma moça com uma criança, uma menina, que quando acordou desatou a desarrumar o cabelo de sua boneca, para que eu refizesse as tranças; ela mesma, só prendia a trança feita, tentava, mas não conseguia emaranhar as mechas separadas. Coisa para o futuro. No meio do trajeto, o barco teve que rebocar um outro, com problemas no motor, e levar seus passageiros; aí fiquei do lado de uma moça com uma criança de colo, que dizia sentir frio quando o vento batia, mas já estava calor, fazia, seguramente, uns 30º C!
A cidade nesse dia é o que se poderia chamar de uma verdadeira bagunça, com algum sentido: muitos barcos no pequeno porto, diversos ambulantes, vários carros de som com propaganda em alto volume, todos ao mesmo tempo, nenhum telefone público funcionando e, para nosso azar, faltou energia, ficamos sem serviços de banco nos terminais. Na feira local são vendidos os produtos produzidos na região: banana, jaca, abóbora, aipim, e alguma verdura; não queira encontrar maçã, e se encontrar, vai estar ruim. Fiquei com receio de trazer carne, por conta do tempo de trajeto, e do calor, ou seja, os dias subseqüentes no barco foram de variação de receitas com ovos, sardinha, e proteína texturizada de soja, essa com algum paio, para disfarçar. Para meu azar, o charque que eu comprei em Salvador estava estragado.
No volta de Camamu, o barco saiu carregado de coisas que o pessoal comprou, tinha até televisão, filtro de água de cerâmica e madeiras para construção. Dessa vez, sentei do lado de um menino, que ficou de castigo porque mexia na roda de leme do barco, na ausência do capitão, que não gostou nada quando viu. Que menino inteligente! Sabia tudo sobre os barcos, local para abastecer combustível, qual era mais rápido, e qual o motivo para isso, a população das cidades todas da região, inclusive, das capitais do país. Estava indo passar as férias escolares na casa da avó. Depois de muito falar, desapareceu por uns instantes e surgiu com um carrinho vermelho, à pilha, e com controle remoto. Falei: “uma Ferrari, italiana!”. Ele respondeu: “não, é feito na China”, mostrando o decalque.
MaraúEntão, ele foi me mostrar o funcionamento do carrinho, a vantagem das rodas, de sua intenção de pintar a frente, machucada pelas batidas nas quinas, enfim, os papos de meninos, que eu só ficava escutando. Esse vai ter um barquinho, um dia!
Meu novo desafio é sobreviver com pouca água, por conta das limitações para obtê-la na Ilha, que não tem tratamento de água; quem tem poço para obtê-la cobra caro, para os padrões médios de preço de marinas. De minha parte, sempre fica a  dúvida se o poço de água está a uma distância segura de fossas, e se a água foi testada e tratada. Concluímos que a água da chuva é a alternativa mais segura, e barata.
Durante o dia, no Campinho, sentíamos mais o movimento gerado pelo tráfego de embarcações, ao longo do canal, algumas em alta velocidade, e isso nos deu vontade de ir para um cantinho mais recolhido. Estava logo ali, no Canal da Ilha de Goió. Essa ancoragem é dez! Quietinha, com uma prainha só para nós, na maior parte do tempo, com direito a peixinhos curiosos. No fim de tarde, víamos papagaios e maritacas cruzando o canal, com vegetação de mangue nas margens, tudo muito lindo!
Como nossa intenção era conhecer a Cachoeira de Veneza, em Tremembé, então seguimos adiante, para subir o Rio Maraú, e chegar até a cidade de mesmo nome. A região não tem levantamento batimétrico pela Marinha, então, nossa atenção foi redobrada.
A vantagem de Maraú, para abastecer o barco, é que podemos fundear logo ali em frente, e é mais fácil trazer perecíveis, sem correr o risco de estragarem. A desvantagem é o barulho de música na cidade, até de madrugada, principalmente às sextas-feiras, vésperas da feira local.
Mata---Rio-Maraú
Local de contrastes: à noite, rezam novenas na Igreja de São Sebastião, com auto-falantes ligados, depois, os auto-falantes tocam música profana, com forte apelo sexual. Isso no carnaval deve ser uma loucura! Nós preferimos a ancoragem selvagem, e seguimos para Tremembé, para conhecer a Cachoeira de Veneza.
O trajeto para Tremembé é completamente preservado, sem construções, só mangue e mata. O tempo todo, sentimos um cheiro bom de mato. No dia em que chegamos, não deu para ir até a Cachoeira, porque armou um tempo feio. Bom para recolher água! O banho de cachoeira fica para a próxima.

 

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 Versão do Dorival

A Baia de Camamu, terceira maior do Brasil (todo mundo cita isso), ainda é bastante preservada. Enquanto estávamos ancorados no Campinho, tomamos um barco local de transporte para ir até Camamu, fazer feira e conhecer a cidade. A rota é rasa demais para o Luthier, e na chegada tem muitas pedras que obrigam os barcos a fazer vários zigue-zagues, para se safar delas.Ancoragem-em-Goio
A cidade tem calçadas muito estreitas que, devido ao trânsito de pedestres, nos obriga andar na rua, no meio dos carros e motos. Seguindo o costume das cidades do interior, há a famosa rádio poste, com seus potentes alto-falantes, disputando nossos ouvidos com os não menos potentes sistemas de som instalados em carros e motos, que ficam anunciando o comércio local, horário de missas, apoio da prefeitura, vereadores, etc. A feira ocupa dois galpões e duas áreas fechadas, uma para farinhas e outra para carnes. O ambiente não é muito limpo, e frutas em bom estado se misturam com outras já apodrecendo. Chovia, e, talvez por isso, a minha impressão não foi das melhores.
Quando voltamos da cidade de Camamu, mudamos de ancoragem para um canal que fica entre a Ilha do Goió e a Ilha do Campinho. É muito abrigado de ventos e a correnteza, devido às marés, é bem menor. Havia alguns veleiros e muitos barcos com turistas apareciam, mas o sossego não foi interrompido. Escolhemos uma pequena praia na ponta sul da Ilha do Goió como nossa preferida. Fomos lá todos os dias. Nessa ancoragem, não há sinal de TV e Internet. Água doce de boa qualidade não é fácil de encontrar. A água usada na ilha vem de poços e, em geral, não é tratada. Para beber, usamos água mineral, que pode ser comprada em Camamu ou Maraú.
Como alternativa, comecei a fazer experiências de coleta de água de chuva para ser usada nos banhos, higiene e lavar louças. Inicialmente, levantei as abas laterais da cobertura que vai desde o bimine até a escota da mestra, que fica no meio da retranca. Essa cobertura tem 6 metros quadrados de área. As abas levantadas formaram uma espécie de calha. Coloquei baldes na parte mais baixa e consegui colher 60 litros de água em três ocorrências de chuva forte. O problema desse sistema é que, com o vento, parte da água cai fora do balde.
Do canal da Ilha do Goió, saímos em direção a Maraú, que fica em um rio do mesmo nome. Ancoramos em frente a um pequeno píer flutuante que está precisando de reparos. A cidade é muito mais limpa. As praças, guias e gradis estão sendo pintados para uma festa de verão que começa dia 17 de janeiro. Toda sexta e sábado tem uma feira muito interessante. As frutas e legumes têm a mesma aparência das de Camamu. Há muitas barracas vendendo utensílios domésticos, roupas e calçados.
Mangue-Preservado
Em Maraú, a rádio poste é ensurdecedora, e a ela soma-se o som dos feirantes, que vendem todo tipo de pirataria musical e dvd. Esse sistema de som é administrado pela Paróquia. Ás 18:00 hs, eles transmitem um tipo de “Ave Maria” e depois iniciam uma novena. A novena é uma oração feita no estilo capela (música só cantada, sem instrumentos musicais), em uníssono, sem acordes, um tipo de canto gregoriano que não é temperado nem pitagórico, muito desafinado. Do barco a coisa fica terrível. O efeito da propagação do som em tempos diferentes, devido às diferentes distâncias até as caixas de som, não permite, apesar do volume muito alto, entender o que está sendo dito, transformando o cantado desafinado em tortura medieval. Depois da novena, a mistura de sons segue com músicas de todos os tipos e gostos, a noite toda.
Compramos frutas, carne, alguns legumes e água mineral. Com o detalhe de ter que esperar o comércio reabrir às 14:00 hs, porque tudo fecha para o almoço.
Logo seguimos rio acima, até um ponto de ancoragem perto de Tremembé, onde está a Cachoeira de Veneza.
Para melhorar a coleta de água da chuva, resolvi montar duas calhas com canos de PVC, uma para bombordo e outra para boreste. Usar uma calha para coletar água não é novidade, o difícil foi fazer a borda da lona ficar dentro da calha quando venta. A solução foi fazer com que a borda superior ficasse fixa no fundo da calha, e a borda inferior próxima à borda exterior da calha. Esticar bem, mas deixar que o conjunto se mova um pouco com o vento, mantendo a borda do pano na calha.
Trapizonga
A coisa toda é um protótipo, mais parece uma trapizonga desajeitada que uma calha, mas, na verdade, é uma trapizonga mesmo. Mais um treco para guardar que tem a vantagem de estar coletando muita água. O Luthier tem a capacidade de armazenar 475 litros de água distribuídos em três tanques, mais 25 litros em um boiler. Treze dias depois de abastecer em Salvador, estamos com 300 litros de água nos tanques. Já coletei uns 150 litros de água da chuva. No balanço, estamos consumindo 27 litros de água doce por dia.
A ancoragem próxima à Cachoeira de Veneza é muito tranqüila, não há som alto, estamos sós e, mesmo com muito vento, o barco fica quieto. Aqui posso descansar depois de duas noites mal dormidas. Chega, estou reclamando muito para meu estilo, fica chato. Maraú tem seus encantos.

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Versão de Catarina

Quando eu poderia imaginar, há alguns anos atrás, passar uma virada de ano vendo o estouro dos fogos no Farol da Barra, do mar da Baía de Todos os Santos? Mas passamos assim, sob um céu estrelado e mar de almirante. E tudo aconteceu por acaso, com um convite especial dos funcionários da Marina, que ganharam esse passeio de catamarã, e quiseram nos incluir na festa. O ambiente era todo “família!”: o funcionário com a esposa, a mãe, e os filhos; ficamos ao lado de um casal assim, passeando pela baía, vendo os prédios iluminados ao fundo, como a Igreja de Nosso Senhor do Bonfim, tendo os baianos por guias turísticos. De tão familiar, teve até vômito da filha do casal ao nosso lado; normal, a chance de criança passar mal com o balanço do mar é sempre maior.
Na hora da virada, nos deram champanhe, e reparamos que todos os baianos, antes de tomar o primeiro gole da bebida, jogavam na água um golinho, para o “santo”; na dúvida, fizemos o mesmo, sabe-se lá! Há muitas coisas que desconheço sobre as crenças dos baianos, e que são muito particulares. E se eu sei pouco, imaginem os estrangeiros, que fazem a maior confusão. Com grande dificuldade, tentei explicar para uma francesa sobre culto à Yemanjá, e o porquê Procissão2de jogarem flores na água para ela. Esclareci que as flores eram a devida homenagem a quem nos protege, no mar e em terra, durante todo o ano, assim como o perfume, que ela também gosta, por tratar-se de uma figura feminina. Então, ela me perguntou o porquê de uma figura feminina tomar conta dos mares, e eu respondi que deve ser porque o mar é temperamental, como uma mulher bonita e vaidosa, que às vezes fica muito brava, mas, no dia seguinte, aparece para você como uma flor de formosura, mansinha, lhe conquistando, por completo. Quando ela me perguntou se Oxalá era pai de Yemanjá, vi que ia ser difícil, pressenti que a próxima pergunta ia ser quem era o herdeiro do trono, ou se havia democracia entre as forças da natureza, então eu disse que havia livros específicos sobre o assunto e ela se deu por satisfeita, porque franceses adoram livros, acham que eles explicam tudo sobre o mundo.
No dia seguinte, pela manhã, ficamos aguardando a procissão marítima de Bom Jesus dos Navegantes, que ia sair do 2º Distrito Naval, perto da Marina. Do nosso lado, no píer, também aguardava uma família baiana, de duas filhas que foram levar o pai para assistir a tudo de perto, como ele faz há mais de 15 anos, como promessa. Achei muito tocante a forma como os baianos tratam os seus idosos, que também fazem por merecer o carinho que lhes dão. FamíliaBaianaSalvador
A conversa toda no píer girava em torno de qual figura santa seria transportada na Galeota, se Nossa Senhora da Conceição da Praia iria junto, ou não, se os remadores agüentariam remar todo o trajeto, ou seriam rebocados, e se, por sua vez, estes seriam oficiais da marinha, ou pescadores usando o uniforme oficial, e ainda, qual seria o trajeto da embarcação, etc… . Assim passamos a primeira manhã do ano, envoltos em especulações, dando risadas.
“Tchau. I have to go now, I have to go now. Tchau!”, como diz a música baiana, era hora de ir embora de Salvador, muito mais tarde ficaria ruim para descer a Costa, parando nos lugares que pulamos na subida. Não fiquei triste, porque sei que vou voltar. Abastecemos bem o barco com alimentos, água e combustível, e saímos na manhã do dia 05 de janeiro. Na saída da Baía de Todos os Santos, cruzamos com dois enormes navios de cruzeiro, indo em direção a Salvador, como fazem todas as semanas, nesta época do ano, transportando perto de 3.000 passageiros, cada.
Não sei se por uma infeliz coincidência, mas a água da baía estava com muito lixo, garrafas PET e sacos plásticos, de montão.
Logo nas primeiras horas de viagem, vi um peixe pulando atrás do barco: o infeliz tinha mordido nossa isca. O Dorival correu para puxar, e colocou o peixe no balde, para terminar de agonizar. Foi o primeiro peixe pescado e embarcado, que gerou um sentimento duplo, de pena pela situação do bicho, dando os últimos suspiros, e de satisfação pelo feito. Resultado: aceitei o presente do mar, que virou muqueca na nossa chegada em Camamu.
Tudo o que não ventou na nossa vinda, venta aqui em Camamu, que beleza! Mas tem muita correnteza, tem que ficar esperto. E agora há pouco chegou o barco da francesa “perguntadeira”. Será que ela leu o livro? Fato é que, gente assim, interessada, estuda e vai longe. Bem diferente do pessoal do “Rally Ile du Soleil”, que não conversava com ninguém local, e nem com os outros franceses que chegavam, e não eram participantes do Rally. Quem dirá ceder um espaço no píer que eles alugaram! Esse egoísmo escandalizou os baianos da marina.
Aqui em Camamu acordamos ao som de vários pássaros, principalmente, o sabiá. Interessante que, em São Paulo, eles aparecem só no mês de setembro, devem migrar para o nordeste, nesta época.
E eu já estou pensando na feira de Maraú, que acontece aos sábados de manhã. A minha vida é pensar em provisões para o barco. Vou convencer o Dorival a ir até lá, na sexta-feira próxima, sabe como é….

 

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Versão do Dorival

O Natal em Salvador foi calmo e tranqüilo. A noite da passagem de ano para  2010 foi bem agitada. Fomos convidados para aperitivos no catamarã de um francês, onde já estavam outros casais, também franceses. Nos serviram  algo que eles pensavam ser caipirinha. Sem chance, fui para a cozinha fazer caipirinhas de verdade; fiz muitas, tomei uma só, com muito gelo. Ocupado com isso, quando me dei conta vi que estavam formados os tradicionais grupos mulheres, de um lado, e homens, do outro. Não sei sobre o que elas estavam falando, mas eles contavam vantagens das travessias do Atlântico.
De repente, percebi que quase todos se mudaram para outro catamarã; ficamos eu, a Catarina e um outro casal. A mulher estava tentando explicar que, para nós, a festa tinha acabado ali, e que não tínhamos sido convidados para a ceia que aconteceria no outro catamarã. Esse casal nos convidou para irmos juntos ao Pelourinho. ProcissãoAcho que o comandante do outro catamarã percebeu o que estava acontecendo e veio, meio sem graça, convidar a nós e ao outro casal de franceses para irmos à ceia. Aceitamos, mas, em seguida, fomos convidados pelo pessoal da administração do Tenab para ir com eles, em um dos Catamarãs a motor que fazem a travessia de Salvador para Morro de São Paulo, passear pela Baia de Todos os Santos e acompanhar, embarcados, a queima de fogos na Barra. Lá estavam as famílias dos funcionários e das terceirizadas que cuidam da segurança e limpeza. A companhia cedeu o catamarã, tripulantes e combustível, e cada um trouxe um pouco de bebida, refrigerante e salgadinhos de todos os tipos, ótimos, é claro. Fomos muito bem recebidos, sem formalidades, e passamos uma excelente noite com eles, com direito a chuva de champanhe à meia noite. Todos muito felizes, junto com seus familiares e muitas crianças. Ninguém bebeu demais, não houve qualquer tipo de problema.
Dia 1º, acontece a tradicional procissão de Bom Jesus dos Navegantes. É uma festa marítima. A imagem que, no dia anterior, veio para a igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia, segue embarcada na galeota Gratidão do Povo até a Igreja de Boa Viagem. Depois que a geleota passa pelo Forte de São Marcelo, muitas embarcações se juntam à procissão e o inicio solene se transforma em uma festa popular muito colorida e alegre.Primeiropeixecamamu
O dia chegou, 5 de janeiro, saímos de Salvador às 7:00 hs com destino a Camamu. Sem vento, motoramos em direção à barra da Baia de Todos os Santos. Sem ondas, um dia lindo. Um dos funcionários do Tenab me disse que, quando estivesse perto da bóia cega próximo ao Farol da Barra, colocasse a isca na água porque ali é bom para pescar. Na mosca, peguei um Dourado de uns três quilos. Com o barco no piloto automático, motorando, e com a Catarina de vigia, eu fiquei um tempão limpando o peixe. Depois, ela foi temperar, para fazer uma moqueca em Camamu.
O mar estava muito calmo, ondas de no máximo um metro, com período de 12 segundos, uma maravilha. O mar estava azul e, sem vento, a transparência da água era tanta que pude ver um cardume de tubarões. O vento só apareceu depois das 14:00 hs, dez a doze nós, través. Velejamos até o Campinho na Baia de Camamu, com velocidades entre 6 e 7 nós, ajudados por um nó de correnteza. Chegamos às 16:30, com a maré enchendo. O lugar aqui é lindo, para qualquer lado que se olhe, se vêem praias com coqueiros ou manguezais imponentes.
Muitas escunas de turismo passam lotadas de turistas em direção à Ilha do Goió. As pousadas no Campinho estão lotadas e nesta ancoragem somos maioria, são quatro barcos brasileiros para um francês.
Campinhocamamu
Ancoramos com cuidado, lancei muita corrente e, como em Suape, usei um estrapo de cabo têxtil, com uns dois metros de comprimento, para prender a corrente ao barco. Esse cabo evita que, durante  os movimentos do barco devido à correnteza da maré vazante, combinado com o vento, a corrente fique raspando na pintura da proa.
Depois de descansar um pouco, jantamos a moqueca feita com o dourado pescado, muito bom.
Aqui, a internet via celular cai muito e é muito instável. Vou tentar me comunicar com o mundo, com certa dificuldade.

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Versão da Catarina

Como diz a música, “eu fui no Tororó beber água e não achei”, achei uma pequena praia, com águas calmas, transparentes, com peixinhos, num local de vegetação bem preservada, no Canal de Itaparica. Para achar a água, que brota da pedra, só na época das chuvas, assim me explicaram os baianos. Nenhum problema, o local vale a pena em qualquer época, mesmo na “seca”.Canal-de-Itaparica-1
Toda essa região da Ilha de Itaparica tem nascentes de água mineral, uma riqueza. É curiosa a inscrição na fonte da cidade de Itaparica: "água fina, que faz velha virar menina"; não sei se é por conta dessa promessa, ou porque a água é grátis, mas lá está sempre cheio de gente.
Saindo da cidade de Itaparica, velejamos por cerca de duas horas canal adentro, para ancorar nas proximidades da Ilha do Cal, um lugar paradisíaco, mas com cachorros na recepção, por ser uma propriedade particular; como esse, tantos outros assim, no Canal de Itaparica.
Venta de montão nesse canal, a partir de umas nove e meia da manhã, e só vai parar à noite.
No dia seguinte à nossa chegada, logo pela manhã, ouvimos um estrondo, por debaixo d’água, seguido de uns barulhinhos de estilhaços, como se o barco estivesse sendo frito. Diagnóstico: bombas utilizadas na pesca. Essas bombas são muito combatidas na Bahia de Todos os Santos, pela Polícia Florestal, mas a fiscalização não consegue cobrir tudo.
Partimos em direção a Catu, que fica depois da ponte que faz a ligação entre o continente e a Ilha. Grandes emoções na passagem por debaixo da ponte. Será que vai dar? Dá, com folga, mas assusta.
catu Catu é um pequeno povoado, com a maioria das ruas de terra, uma igreja católica, uma escola, e uma mercearia, e tudo fecha no horário de almoço. Desta vez, havia três veleiros ancorados, mas desabitados. Algumas coisas eu não gosto de ver nesses povoados, apesar da tranquilidade: passarinhos presos em gaiolas, e queimadas, que são hábitos culturais do brasileiro, não só na Bahia. O costume é tocar fogo em folhas e galhos secos. Por que não usam essas folhagens para produzir adubo? Uma composteira é tão simples de se fazer… Para isso, há que investir em educação, aquele tipo de “gasto” que não traz retorno em votos, então, não interessa.
De Catu, seguimos de bote até Cacha-Prego, na ponta da Ilha. Realmente, um dos lugares mais bonitos que já vi! Água limpa, praia extensa, pessoas tranquilas, e a visão do mar aberto à frente.
Na cidade, vimos uma roda de pessoas negociando peixe. Os peixes que tenho visto na Bahia são miúdos, e há pouca variedade, talvez por conta da plataforma continental estreita. Não gostei de ver filhotes de atum sendo vendidos; outro dia, vi venderem filhotes de tubarão, em Itaparica. Nada disso era para acontecer. Não comprei nada, para boicotar. Eles, os pescadores, sabem que estão errados, mas dão aquelas desculpas “eu tenho que alimentar minha família”; no futuro, a família crescida pode não ter com que se alimentar, vindo do mar.
Voltamos de Catu passando por Tororó, nossa ancoragem para pernoite, e para se refrescar na água do mar.
Hoje reclamei demais, estou parecendo uma “eco-chata”. tororó
Vou falar de coisa boa. Fiquei muito satisfeita com o atendimento no Posto de Saúde de Itaparica, para tomar vacina. Simplesmente, fui muito bem atendida, e na hora em que chegamos, sem fila; isso é praticamente impossível em São Paulo, afora o fato de que, lá, eles nunca têm a vacina para aplicar. O que eu não contava era com o vexame, que eu mesma dei. É que eu não gosto de injeção, sangue, e afins. Quando senti a picada da vacina contra tétano, comecei a suar frio, minha vista escureceu, e eu pedi para sentar. A enfermeira veio e mediu minha pressão: 7 por 5, e disse que eu deveria estar assustada. Quer dizer, com paúra, mesmo! Então, fui para a próxima vacina, contra hepatite. Olhei para a cara do Dorival, que me falou: “não chora, não!” Nossa, nessa hora me lembrei de nossos amigos do Acauã, enfrentando uma situação tão mais difícil no mar, e fiquei firme, não desmaiei! Bom, já tenho um apelido, por conta dessa….
Já voltamos para Salvador, para nos prepararmos para a viagem até Camamu.
Aqui está um super agito, por conta do “Rally de Soleil”, e de outros barcos franceses, que também chegaram. Os brasileiros são franca minoria.
Os franceses atravessam o Atlântico Norte, mas evitam subir a costa do Brasil no inverno. Preferem deixar o barco parado numa marina no NE, e viajar de avião ao Rio de Janeiro, indo até Foz do Iguaçu, e outras localidades. Quanto exagero, bem pior é a vacina contra tétano!
Aqui na cidade, muitos preparativos para todas as festas que virão, inclusive, para o Carnaval.
Tem uma música muito tocada hoje na Bahia, e o cantor é o Juaperi. A letra, no refrão, é assim
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“Não tem sapato que lhe calce
ela só gosta de sandália de couro
Não tem sapato que lhe calce
ela só gosta de sandália de couro cachaprego

De sandália de couro
de sandália de couro

De Tênis, não vai
De Scarpan, não sai
Descalça, machuca o pé
O salto, lhe trai
Tamanco, ela cai
Sapato, lhe dá chulé”

Legal, né? A Bahia é muito musical.
Para terminar, desejo a você paz no Natal! E que em 2010, você possa ficar perto do MAR, qualquer MAR! Até lá!

 

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Versão do Dorival

A exploração do Canal de Itaparica iniciou-se com uma velejada até a Ilha do Cal. O Canal é uma faixa estreita de água entre a Ilha e o continente. A navegação é fácil, mas demanda planejamento e atençãoCanal-de-Itaparica-2 porque existem muitos bancos de areia e lugares bastante rasos. 
A ancoragem na Ilha do Cal é abrigada e tranquila, mas o fundo é de areia. É preciso usar mais corrente que o normal, e contar com pequenas escapadas (garradas) quando o barco gira com a correnteza. De lá, seguimos a motor até Catu e Cacha-Prego. É necessário passar por baixo de uma linha de transmissão de energia elétrica, e por uma ponte que liga o continente à Ilha de Itaparica. A ponte tem altura de 18 metros na maré cheia, a linha de transmissão é bem mais alta, embora não pareça. O mastro do Luthier tem 13,8 metros de altura e está posicionado sobre o convés 1,2 metros, acima do nível do mar. Somando mais um metro da antena de VHF, o total chega a 16 metros. Passa fácil, mas a sensação é de que vai bater. Não pude ver, porque estava no comando, e o bimine obstruía minha visão, mas a Catarina ficou gritando: “VAI BATER”, depois disse “passou”, bem baixinho.
Catu pertence ao município de Vera Cruz e é uma comunidade bem resolvida. Não tem conflitos de terra, as pessoas são tranquilas, cordatas e educadas. As casas, a maioria com as portas e janelas abertas, são ocupadas por pessoas Ilha-do-Cal de mais idade. Como muitos lugares no Brasil, lá também os mais jovens se mudam para trabalhar em cidades maiores. Havia uma expectativa do retorno dessas pessoas para ver a família durante as Festas. Em Catu, assim como em São Francisco do Paraguaçu, e até mesmo em Salvador, se vê o povo reformando ou, pelo menos, pintando as casas para o fim de ano. Em Catu, vi dois adultos e três crianças, ao mesmo tempo, lixando um portão, com bastante cuidado, para receber a pintura nova. As cores usadas aqui são puras, ou seja: amarelo, vermelho, azul, mas sem qualquer modificação; não usam: azul claro ou escuro, é azul puro, mesmo. O uso dessas cores, pintadas em faixas, fica muito interessante em alguns barcos de pesca, e até em algumas casas, mas para o padrão do SE, é um pouco estranho. Mas eles gostam, e fazem com capricho, é o que vale.
Fomos a Cacha-Prego de bote. O lugar também é muito bonito e interessante, mas difere de Catu por ter hotéis, pousadas e casas de veraneio, algumas muito ricas, bem posicionadas junto à orla, sem, comCanoa-de-um-pau-só isso, destruir a paisagem típica da região, cheia de coqueiros. Em Cacha-Prego, pela primeira vez vi, em frente à Cooperativa de pescadores, uma pequena praça com mesas de concreto e espaços pavimentados, onde os pescadores, juntos, separavam e vendiam os diferentes tipos de peixes, que conseguiram naquele dia. Interessante foi ver em uso uma daquelas balanças antigas, de dois pratos, onde se coloca o produto em um deles, e pesos calibrados no outro, até que o equilíbrio apontado por uma agulha no centro seja alcançado.
De Catu, voltamos pelo canal até Tororó. Nada de água, só alguns pingos. Dizem os baianos que no inverno tem bastante água, parece até uma cachoeira. Dormimos ali, e no outro dia fomos para Salvador.
Estamos no Tenab outra vez. Tenho que trocar o óleo e o filtro de diesel do Motor. Fui até a Calçada, um bairro onde tem todo tipo de loja, desde roupas, mangueiras, peças para carro, ferramentas, etc.. Não tinha o material que eu precisava, mas um comerciante me indicou uma outra loja, que fica na estrada, uma BR. Pedi a ele para ligar, e confirmar se tinha o filtrocachaprego2. A resposta foi positiva. Uma hora depois, de ônibus, cheguei à loja. O vendedor (não é baiano), me disse: “temos a peça sim, mas por encomenda, chega de São Paulo em uma semana”. Um outro que viu a cena e a minha cara de desapontamento, deu um jeito de me dizer onde eu poderia encontrar o material. Fui até lá e “pronto”, muito bem atendido, mas bem devagarzinho, por um baiano, consegui o que eu queria.
Em Itaparica, instalei as cartas eletrônicas brasileiras no “notebook” de um casal de um veleiro turco, muito simpáticos. Novamente, os encontramos aqui, no Tenab. Eles queriam dicas de ancoragens na Baia de Ilha Grande e de marinas no Rio de Janeiro. No Luthier, viram que eu tenho um GPS “bluetooth”, que tem um pequeno painel solar, igual ao que ganharam de presente de um amigo, e que nunca funcionara. Eu coloquei o GPS deles para operar. Em retribuição, eles nos deram um amuleto da sorte, que é um olho azul com um pequeno adorno em macramé. Vi muitos,  no barco deles. Eles sabiam que era aniversário do Luthier (19 de dezembro). Gostei muito do mimo, foi legal o Luthier ganhar um presenteLuthier-dinete de terceiros.
Este ano foi especial para mim, conheci muitos lugares interessantes, fiz muitos amigos, aprendi um pouco mais de meteorologia, navegação, e regulagem de vela. Percebi que ainda tenho muito a aprender, e muitos lugares para conhecer e rever. Foi o melhor ano da minha vida, principalmente por viver 24 horas ao lado da Catarina.
Desejo que 2010 seja o melhor ano da vida de todos vocês, que tem a paciência de ler e acompanhar nosso cruzeiro pelo nordeste, com muita paz e saúde para realizar seus sonhos. Feliz Natal! 
Vou preparar o Luthier para seguir viagem para Camamu, e meu coração para deixar Salvador da Bahia, seus mistérios, cheiros e sabores.

 

 

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Versão da Catarina

Fomos parar aonde o tempo parou: em São Francisco do Paraguaçu, às margens do Rio Paraguaçu, que deságua na Bahia de Todos Canos-no-Rio-Paraguaçuos Santos. O local foi indicado por nossos padrinhos do mar, que acertaram na recomendação.
Não me lembro de uma ancoragem tão tranquila; apesar da correnteza, não há solavancos, nem marolas de embarcações. Dormia com o barulho de golfinhos caçando, nada mais, total silêncio. São muitos os golfinhos, que vemos cruzando o canal durante o dia, de dorso claro, quase branco. No início da manhã, éramos acordados por pescadores, recolhendo redes, em canoas compridas, feitas de um único tronco de árvore. Ao nosso redor, muita vegetação e poucas construções, estas ao lado de  um convento, hoje em ruínas.
O povoado não tem internet via celular, nem supermercado. Muitos produtos ainda chegam à região por saveiros antigos. Para se
Convento-de-Santo-Antôniocomprar frutas, tem que ir atrás de um moço que passa pelas ruas com um carrinho de mão, com pacotes de feijão, mel, algumas cebolas e tomates miúdos e, às vezes, alguma fruta. Há uma padaria simples, e se consegue peixe, que são marinhos, porque a água ali é bem salgada, inclusive, tem a cor esverdeada do mar.
Como bem definiu o padeiro, ali é a “roça”. Na roça do interior de São Paulo, quando você deseja boa tarde, o caipira economiza nas palavras para responder, e diz: Tarde! Na Bahia, eles também economizam, mas respondem:
Boa!
As pessoas vivem da pesca, de pequenas roças, e da espera pelo título da terra, e bem aí começa o problema. Pode-se dizer que, ali, a convivência humana está marcada pelo desentendimento, e pela disputa por terra, desde a colonização. Acho até que o lugar merecia uma benzedeira, para acabar com a urucubaca reinante: já teve guerra com indígena, invasão holandesa, prisão de escravos, perseguição aos frades franciscanos e, atualmente, disputa entre os que se dizem quilombolas, e os outros. 
No dia seguinte à nossa chegada, apareceu por lá o barco de duas irmãs francesas, que conhecemos no Tenab, uma delas professora de matemática aposentada, e a outra, pintora de aquarelas. Com elas, fomos passear pelo povoado, e conhecer o que sobrou do convento: pouca coisa, além de dois sinos, da estrutura em si, de alguns
São-Francisco-do-Paraguaçu- azulejos, e de resquícios das pilhagens no local.
À noite, fomos convidados para um jantar no barco das “meninas”, sim, porque barco só de mulher é todo diferente, a começar pelo tapete no fundo do bote, e os enfeites espalhados pelo interior do barco, com organização de primeira.  O jantar foi muito bom e, desta vez, eu que tenho que morder a língua, pois o vinho branco era excelente, nem parecia branco. Teve entrada, prato principal com atum, que elas trouxeram de Cabo Verde, em conserva feita por elas próprias, e sobremesa; considerando-se as limitações de um barco, um luxo! Ficamos lisonjeados com tanto paparico… Elas quiseram entender a briga dos quilombolas, e achei engraçado confundirem desinfetante vendido em garrafa PET, como é costume nas localidades mais pobres, com suco de frutas; ai se elas
São-Francisco-do-Paraguaçutivessem provado a química!
Voltamos para Itaparica, onde está cada vez mais complicado ancorar: puseram um monte de poitas, sabe-se lá de quem são, e se tem autorização da Marinha. E acho que tudo vai piorar quando construírem a ponte ligando a Ilha diretamente a Salvador, pode crer!
Dias desses, estava nadando em volta do barco, em Itaparica, e vi uma água-viva. Afastei-me do bicho e gritei pelo Dorival, que estava embaixo do casco, mergulhando; quando ele apareceu, me falou para sair da água, imediatamente. Babaca que eu fui; fiquei paralisada como uma lagartixa! Minhas reações alérgicas costumam ser horrorosas, por isso, vou nadar de roupa de neoprene, nesses tempos.
O pessoal que vem da Europa conta que, no Mediterrâneo, as medusas estão fora de controle, um desequilíbrio ecológico causado pela falta do predador, a tartaruga; acho que eu não gostaria de ir a um lugar assim, sem poder nadar nunca.
Tenho uma dica gastronômica para as festas deste fim de ano: é o Pão Delícia, tradição na Bahia, consumido nos lanches da tarde, ou no “café da noite”, como chamam aqui. É um pão leve, fofinho, com cobertura de queijo ralado e manteiga. Para fazer, é assim: você pega R$3,00 (um pouco mais, ou, um pouco menos), um chinelo, vai até a padaria ou supermercado mais perto, na Bahia, e é certeza encontrá-lo. Falei bobagem só para relaxar do estresse de fim de ano! Você perdeu o seu tempo em ler, e eu, o meu de escrever, então, estamos quites.
Agora vou falar sério: o pão é bom mesmo, e tem a vantagem de ficar pronto em apenas 15 minutos de forno, o que é ideal para o barco, pois economiza gás, e não esquenta o ambiente. Pegue a receita na Internet; se quiser passar um tempão amassando e esperando a massa crescer; tem uma boa no “site” do Jornal Hoje, da Rede Globo.
Nos próximos dias, muito trabalho conjunto no barco, correria de epóxi e sikaflex, lavação de roupa, do próprio barco, etc… Depois, vamos explorar o Canal de Itaparica. É a programação baiana, por ora. Ah, e procurar bandeirinhas para enfeitar o barco, para as festas todas que virão.

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Versão do Dorival

Saímos de Salvador logo após o meio dia, com destino a Itaparica para, no outro dia, iniciar um passeio pelo Rio Paraguaçu. Sua foz fica na Baia de Todos os Santos. Nesse dia, chegaram mais de 20 saveiros para participar de uma regata. Saveiro-no-TENABUm deles ficou com a adriça da vela presa em um moitão, impedindo baixá-la. O espaço entre os cais do Tenab é pequeno. Rapidamente, vários homens mergulharam e levaram cabos para prender o saveiro aos outros barcos e ao cais, enquanto um subia muito rápido e,  sem qualquer ajuda de cabo ou cadeirinha, chegou ao topo do mastro para soltar a vela. Gostei muito de ver como eles tratam, uns aos outros, com cordialidade e respeito, apesar de serem concorrentes na regata e no trabalho do dia a dia, transportando todo tipo de coisa entre as pequenas localidades situadas na da Baia de Todos os Santos, em suas ilhas ou nos rios que nela deságuam.
Velejamos até a nossa primeira ancoragem no rio, atrás da Ilha de Monte Cristo. Um lugar muito calmo e tranquilo; nem a correnteza incomoda quando a maré está vazando. A ancoragem é tão calma quanto na Ilha da Cotia, em Paraty, e no Bracuhy, em Angra dos Reis.
No dia seguinte, seguimos para São Francisco do Paraguaçu. A comunidade é pequena, 1.500 habitantes. Todas as casas ocupam Luthier--no-Rio-Paraguaçuterrenos de dimensões parecidas, tendo suas portas e janelas bem próximas à rua, sem varandas ou jardins.
Ancorado próximo ao Luthier estava o veleiro de duas irmãs francesas, que viajam pelo mundo desde 1992. É a segunda vez que passam pela costa do Brasil. Da primeira vez não tinham visto de entrada, e não puderam desembarcar. Agora, o visto não é mais necessário. Elas foram conosco visitar a comunidade e o Convento de Santo Antônio.
A igreja do convento está parcialmente restaurada. A moradora da localidade que nos levou para visitá-lo disse que a reforma parou em 2002, ficando o lado externo e os alojamentos sem restauro. O interior está quase todo vazio, as imagens foram re tiradas e quase todos os azulejos foram removidos. A história do convento está relacionada com os problemas atualmente vividos pelos moradores.
Andando pelas ruas, reparamos que muitas casas têm um cartaz colado com os dizeres: “Não somos quilombolas, não”. Conversamos com moradores que acham que são quilombolas, e os que não. Não pretendo discutir quem tem razão, mesmo porque, o assunto está na justiça e de cada parte há argumentos, fraudes e violências comprovadas. É só procurar por “São Francisco do Paraguaçu” no “Google”, que você irá achar bastante informação, até uma reportagem que foi veiculada no Jornal Nacional.
O que de fato me impressionou foi ver as casas marcadas. Isso me lembrou passagens históricas da época dos romanos, citações bíblicas e, mais recentemente, as casas dos judeus marcadas na Alemanha, pouco antes da segunda guerra, e a KKK nos EUA.Casas-marcadas Em todos os casos, sempre há disputas de terra, e muita violência se sucede a partir disso. Em São Francisco do Paraguaçu também. Em agosto deste ano, violência de ambas as partes envolvidas acabou ferindo pessoas, destruindo mata nativa e torturando animais. 
Ouvi falar de moradores que um grupo de empresários pretende usar o que restou do convento e da igreja para montar um hotel, nos moldes do que foi feito no Carmo, em Salvador.
A Baia de Iguape, banhada pelo Rio Paraguaçu, é um ponto de passagem de Saveiros. Todo dia se vêem vários deles. Tudo é muito lindo. As margens estão bem preservadas. Espero que, seja lá qual for a decisão em relação à comunidade, isso não resulte em desmatamento e destruição da natureza, que é o maior bem que eles têm.
Antes de voltar para Itaparica, pensamos muito em subir o rio até Cachoeira e São Félix. Velejadores baianos vão lá com frequência. Convento-de-Santo-Antônio--Tínhamos os “waypoints” para fazer o cruzamento da Baia de Iguape e subir o Rio, mas com a maré morta, não tive coragem de passar em lugares com apenas 2 metros, na maré cheia. O Luthier cala 1,6 metros.
Voltamos para Itaparica sem vento, no motor. Há algumas novidades em Itaparica: muitas casas  estão sendo pintadas para a temporada; a padaria cor de rosa foi pintada de branco; há um posto da Polícia Militar instalado em uma sala da marina; e a senhora argentina, meio maluca, que morava no coreto, agora mora debaixo de uma árvore, em uma praça próxima à Delegacia de Polícia.
O ancoradouro está mais ocupado. Tinham me dito que os baianos adoram ancorar muito próximos. É verdade, assusta um pouco. Antes de explorar o canal de Itaparica, tenho que aproveitar a ancoragem e instalar alguns acessórios no convés. Dia de meleca com Sikaflex.

 

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Versão da Catarina

Não é só o TENAB, em Salvador, que anda vazio: a Ilha de Itaparica está com poucos veleiros, e o movimento só é maior nos finais de semana, tudo se comparado a agosto último, quando estivemos aqui. Pode ser consequência da repercussão do assalto a uma Pousada em Vera Cruz, em que um francês foi ferido, caso muito comentado entre os estrangeiros que encontramos. Os assaltantes foram presos, mas fugiram da delegacia pela porta da frente. É por essas, e outras, que continuamos dormindo com as gaiutas principais fechadas, apesar do calor.
A violência está para todo lado. Nossos vizinhos espanhóis, a bordo de um catamarã de 50 pés, nos contaram que um segundo veleiro deles foi recentemente arrombado, sendo levados os equipamentos eletrônicos, de dentro das dependências de uma marina fechada, na Galícia (Espanha). Também se sabe que está ruim pelos lados de Dubai; a crise ainda não terminou. Temos que começar a pensar em grades de proteção, alarmes, poços com jacarés, muros de pedra e castelos medievais.
A Ilha de Itaparica continua graciosa, com muitas reformas e restaurações de casas em execução, preparando-se para o verão. Acho interessante a manutenção de fachadas ao estilo colonial, com grandes janelas de madeira, estatuetas clássicas no jardim, jardinagem de época, e o tradicional colorido da pintura.Veleiro-antigo
Aproveitamos os passeios por lá, e até Madre de Deus, para praticar o uso da vela “genaker”, com vento de alheta; para descer a costa vamos precisar dela, e do balão. Numa ocasião, em que estávamos usando a genaker, rompeu-se uma costura que a prende no saco, e a vela foi toda ao mar; deu para recolher rápido, antes que ela se enroscasse em baixo do barco, sem maiores problemas. “Eta” coisa mal costurada!
Outras costuras estão se acabando no barco, mas estas ficam expostas ao sol, como a do saco da mestra. Estamos avaliando a compra de uma máquina de costura, para fazer este e outros reparos.
Nos últimos dias tivemos visitantes no barco, que puderam vivenciar o calor da Bahia, de dentro de um veleiro. Eles passavam, na pele, protetor solar fator 50, mas se expunham ao sol, com roupas de banho, e sem chapéu, por horas, umas 150 vezes a mais, tudo para pegar um bronzeado. “Kids”! Menos mal que o passeio era dinâmico, o que evitava, a tempo, casos de insolação a bordo. E pensar que, no passado, o padrão de beleza ocidental era a pessoa alva, pálida, de ombros caídos, indicativo da nobreza, daquele que não exercitava os músculos, na lida sob o sol.
Fomos com os “kids” aos lugares que fazem parte da nossa rotina por aqui, como no Acarajé e nas bancas de frutas do Comércio, e a outros que nunca tínhamos ido antes, por falta de tempo, como no Farol de Itapuã, e em algumas igrejas históricas. Eles andaram um bocado, do nosso jeito: a pé, ou de ônibus.
Quando dizemos que nos falta tempo para fazer a lista de tarefas pendentes, muitos não acreditam. Estamos viajando, ou, “em trânsito”, e cada deslocamento exige um novo planejamento, novas necessidades, adequações de uso dentro do barco, e o próprio uso do equipamento, que sempre significa algum desgaste. Então, por ora, o Dorival tem que comprar e instalar um filtro de entrada de água, e ele teve que recolocar um ventilador na saída de ar do motor, que caiu com a trepidação do barco; acabou de instalar uma privada elétrica, colocou isolação nos armários que dão para o costado, para diminuir o calor, e ainda precisa fazer a fixação de chapinhas de aço inox, nas partes que se desgastam com o roçar de cabos de amarração, além de uma revisão geral nossa no dentista, etc, etc… E se fizermos tudo o que podemos durante o dia, ainda vai faltar pregar botões de camisa e de calças, que hoje em dia parece que vêm costurados com saliva, como diria a minha “nona”.
De todas as igrejas que visitamos, a mais bonita, para o meu gosto, é a de Nosso Senhor do Bonfim, não pelo que ela ostenta em pinturas antigas ou trabalhos em madeira, mas pela vida que ela encerra, erigida no alto de uma colina, bastante ventilada e iluminada, de portas abertas à visitação por todos, pessoas de mais, ou menos, fé. Algumas cenas marcam, e só vi isso aqui, na Bahia: sentada no banco da igreja uma mulher de roupa e turbante brancos, que poderia ser uma “filha de santo”, e nas escadarias, um menino de uns 12 anos, com roupas muito brancas, bordadas com linha azul, e alguns búzios, sendo conduzido pelos pais; não saberia dizer o que tudo isso significa, mas essa convivência religiosa, num mesmo espaço, é muito interessante.
Outra cena que vejo muito é a de meninos fazendo arruaça para mergulhar no mar, do alto de pontes, ou passarelas, por pura diversão; fazem isso rindo, o tempo todo, uns dos outros.Visitas-no-Luthier
Tenho a impressão de que os baques de vida, ou as passagens por “barras”, são mais facilmente enfrentados por essas pessoas daqui, que tem a felicidade como religião.
Assunto pagão: as prostitutas. Elas estão em vários portos, pelos quais passamos, de luxo ou baratas. Aqui, topamos com elas o tempo todo: no banheiro, jogadas no cais, bêbadas, dentro dos barcos. Outro dia, um senhor que é marinheiro de uma lancha, já de uma certa idade, que estava ao nosso lado no Tenab, falava ao celular com alguém, dizendo estar em Itaparica. Contava que tinha dado um problema no motor, e que ia demorar umas 5 horas para chegar; ao lado dele, uma jovem prostituta. Quem está do outro lado da linha fez que acreditou porque o trajeto em questão não leva mais que 2 horas, para este tipo de lancha; pode ser que o cabeleireiro dela também precise de 5 horas para fazer o corte e, se assim for, eles se merecem.
Estamos nos preparando para passar o mês pelas redondezas de Itaparica, conhecer o canal, e o Rio Paraguaçu. Até lá, outros preparativos para a viagem, dentre eles, iluminar e enfeitar o barco para o Natal, afinal, estamos na Bahia.

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Versão do Dorival

A minha encomenda chegou. Como diz um amigo meu, “queimei a língua” porque a culpa não foi do baiano da loja de Salvador, mas de um paulista da matriz, que “esqueceu” de postar a minha encomenda. O baiano se envolveu no problema, e resolveu tudo.
No dia 17 de novembro recebemos meu filho e minha nora para passar 8 dias conosco. Fomos a Itaparica, Loreto, Pelourinho, Itapuã e Igreja do Bonfim. Velejamos bastante, o vento ajudou e soprou leve o tempo todo. Um único dia teve mais vento e um pouco mais de ondas, o que fez minha nora marear.
Salvador, do ponto de vista de barcos visitantes, está vazia. Em Salvador me disseram que os barcos estavam em Itaparica, não foi o que vi, apenas alguns barcos de fora. A administração do Tenab está esperando, para dezembro, a chegada dos barcos do “Rally Iles du Soleil et Transamazone”. Na edição 2009 – 2010, estão vindo desde Mindelo para Salvador, devendo chegar por aqui entre os dias 14 e 20. São vários barcos, a maioria franceses. Depois de Salvador vão para Paraíba (Praia do Jacaré), e depois para Belém e o Rio Amazonas.
Chegou aqui, à noite, um pequeno veleiro que, dizem os franceses e o pessoal da marina, foi construído em 1855. Se assim for, ele tem 154 anos. Não vi a documentação, não acredito em Papai Noel, nem em coelhinho da páscoa. Em todo caso, é muito antigo, e certamente, sofreu várias reformas e modificações. Uma delas, foi a instalação de um motor diesel moderno. Há pouco espaço para se movimentar no interior e no convés. O dono, francês, velejador solitário, tem 70 anos de idade. Chegou com as pernas inchadas e com uma infecção generalizada. Foi hospitalizado, teve alta uma semana depois e voltou ao hospital com agravamento do estado geral de saúde.
Dia 19 de dezembro, o Luthier vai comemorar um ano na água. Viajamos bastante e, até agora, poucos foram os reparos, mas houve muitas melhorias que fomos fazendo conforme se fizeram necessárias.
O que mais está me preocupando são as costuras das capas das velas, que estão se desmanchando porque a linha está apodrecendo por efeito do sol. Uma cinta que prende a capa da genaker ao punho de tope da vela se desfez, fazendo com que a vela fosse parar toda na água, deixando apenas o saco pendurado. Não houve danos à vela. Substituí a cinta por um pedaço de cabo.
A temporada de turismo está chegando a Salvador, temos de 30 a 32 graus Celsius todos os dias e não chove. Os grandes navios de cruzeiro estão parando no porto aqui ao lado. Muitos turistas saem deles andando pelas ruas do comércio e, em fila, seguem um guia que, com uma placa com o nome do navio, vai à frente em direção ao Pelourinho. O policiamento na rua, de dia, está reforçado. À noite, no Pelourinho, ainda há arrastões de menores infratores roubando turistas.
O Elevador Lacerda que cobrava 5 centavos, agora cobra 15.
Um dia destes, houve em frente ao Elevador Lacerda, na cidade alta, um evento com direito a palanque, discursos e música. Era um encontro nacional das Baianas do Acarajé. O som era tão alto que dava para ouvir tudo do barco. Em um dado momento, escutei o locutor falando: aqui estão as Baianas de São Paulo, Baianas de Manaus, Baianas do Rio de Janeiro e assim por diante. É claro que eu estava entendendo o que estava acontecendo, mas soa estranho.
As lojas e as ruas, do Comércio e da cidade alta, começam a ser enfeitadas para o Natal, bem mais simples e timidamente do que se vê no sudeste. Shoppings são iguais em todo o Brasil. O Iguatemi de Salvador está sorteando um Porsche.Navio-de-Cruzeiro
A vida em Salvador, no verão, é mais cara, afinal é temporada, mas continua simples. Continuam as distorções e profundas diferenças sociais que em nada diferem de qualquer outro lugar.
Aqui ao lado há duas estações de barcas, uma delas é chamada “Mar Grande”. No saguão onde são vendidas as passagens sempre aparece uma mulher pedinte acompanhada por duas crianças. Ela é muito insistente e ao pedir costuma segurar, e até bater, no braço das pessoas. Quando bebe demais, fica bastante desagradável e o pessoal do terminal pede à polícia para retirá-la, e na falta desta, aos guardas do Tenab. Desta vez, quando o guarda tentou levá-la para fora, ela começou a chutar e mordeu o braço dele, que perdeu a cabeça e deu um murro nela, cortando seu nariz, que sangrou muito. Diante da cena, algumas pessoas correram atrás do guarda que, para não ser linchado, se abrigou dentro do Tenab. A cavalaria teve que intervir para acalmar a confusão.
É como se diz, só perde a razão quem a tem. Na minha opinião, por mais que a mulher tenha feito, mesmo a mordida, nada justifica a agressão. Supostamente, o guarda deveria estar preparado para lidar com esse tipo de situação. Este relato é um resumo das diferentes versões que ouvi. Não estava lá para ver o que realmente aconteceu.
Já estamos há muito tempo no cais, o Luthier começa a ficar inquieto. Logo iremos ancorar em Itaparica, continuar a explorar a Baia de Todos os Santos e escolher um lugar bem legal para comemorar o seu primeiro ano no mar.

 

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Versão da Catarina


Há sonhos tenebrosos, e com cachorro atropelado é um deles. Isso porque, o cachorro atropelado dificilmente tem escapatória: logo em seguida vai passar um outro carro, para completar a tragédia, e é difícil que alguém se arrisque, no meio do trânsito, para tentar salvar o que sobrou. Pois durante a viagem de Suape para Salvador tive um sonho desses, desgraçado.
Não que o mar estivesse ruim, não estava, mas na segunda noite de viagem adotamos um rumo que fez com que as ondas, de cerca de 2 metros, pegassem o barco de lado, e foi mais difícil dormir com os solavancos. Acho que o corpo reclamou, como pôde. O Dorival ficou com dor de cabeça.
Mar-calmo
Algumas coisas incomodam em viagem mais longa, uma delas é o colete de segurança, minha “coleira”, com aquela placa nas costas, impedindo uma acomodação melhor no cockpit, durante o tempo de vigília. Aliado ao maior balanço do mar, e à necessidade de se segurar para não cair, principalmente, para preparar os alimentos, todo esse desconforto acaba causando dor nas costas, e pesadelo. Diferente do que parece, a viagem que fizemos foi muito boa, com vento constante, de alheta, grande parte do tempo, sem nenhum incidente, e ninguém enjoado a bordo. O desconforto faz parte, nada que não valha a pena, para se chegar a algum lugar.
Pontos altos da viagem foram a companhia de golfinhos, depois de Maceió, e o banho. O banho, para mim, é a hora boa da viagem, do jeito que for, lá fora mesmo, balançando, com vento. O moral fica elevado, e o ambiente, perfumado. Esse hábito faz parte da cultura do brasileiro (da maioria) que, dizem, vem do costume indígena, de se banhar várias vezes ao dia, em rios e cachoeiras.
A aproximação da Baía de Todos os Santos, pela Ponta Itapuãzinho, também foi especial, mesmo que o fraco vento de popa, que fez com que ficássemos em asa de pombo, por várias horas, jogando conversa fora, dando banho em isca de pesca, fazendo planos. Fazemos de tudo para não ligar o motor, principalmente, com o vento de popa; é certo que o Dorival, nessa condição, vai enjoar.
O que se pensa nas horas de aproximação são conclusões sobre o que deu certo na viagem, e o que pode ser melhorado, mas,   principalmente, num prato de comida normal, de preferência, com um bom bife, acompanhado de arroz, feijão, farinha e salada. Isso ficou para o dia seguinte, porque chegamos à noite, exaustos, e comemos uma lasanha, montada na hora.
No Tenab, encontramos uns poucos barcos, que se engajaram na Mini-Transat. O píer está mais vazio, muito provavelmente, por conta do aumento do preço da diária. Todo mundo se mandou para Itaparica, para ficar na âncora, é o que nós também vamos fazer. Eles não estão muito preocupados, logo vão receber uma outra regata. 
A temperatura ambiente está bem mais agradável que mais a nordeste do país, não passa dos 30ºC, e sempre venta. A da água, não passa dos 27º C. Dá para esperar um pouco mais o ar-condicionado.
O resultado de uma temporada grande de viagem, em que o barco se esforça, são pequenos consertos e manutenções, para todo lado: vazamento na mangueira do tanque de água, no Sikaflex dos fuzis, limpeza do barro dos tanques, etc…
TENABO barco fica desmontado para reparos, com ferramentas espalhadas, e eu contribuo com o Dorival, no começo, passando as ferramentas, depois, perguntando quando vai terminar o serviço e, por último, indagando quando ele vai guardar todas aquelas coisas espalhadas. Tento me controlar, mas algumas reações são irracionais, e a aparente “bagunça”, depois de umas tantas horas, vai me tirando do sério. 
Estamos arrumando o barco para receber familiares, o que significa, entre outras coisas, desocupar a chamada “sala de jogos” do barco, na proa, tirar de lá tudo o que jogamos, e o mais difícil, arrumar um lugar para elas: violão, coletes salva vidas, ventilador, roupa suja, etc… Enchemos o barco de guloseimas, para deixar todas as crianças felizes.
Estou em casa, gosto da harmonia das cores deste lugar. Só fico pensando que vou sofrer quando tiver que ir embora. Vai ser uma novela mexicana. Melhor não pensar nisso, e aproveitar. Bons dias futuros para nós.

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Versão do Dorival

Saímos de Suape na segunda feira, dia 9 de novembro, às 9:15 hs. Levantamos âncora e, passando pelo lado certo da bóia que marca as pedras enfrente ao Ressort, seguindo os mesmos waypoints que usamos para entrar. Sem problemas.
A previsão era de mar de 1,5 metros e vento de 10 a 12 nós E, no primeiro dia, depois teríamos ventos e ondas de ENE. Assim que saímos do molhe do porto, passamos pelas ondas desencontradas que acontecem por efeito das múltiplas reflexões com o Cabo de Santo Agostinho. Logo esse efeito desapareceu e o mar se fez calmo, como previsto.
Tomamos um rumo sul verdadeiro que foi nos afastando da costa, devagarzinho, de tal forma que, ao cair da primeira noite, já estávamos em profundidades maiores de 200 metros. Às 18:00 hs, mudei o rumo para seguir paralelo à costa. Navegamos, aproximadamente, a 18 milhas da costa. Mais uma vez, essa rota se mostrou muito boa, ficamos fora das redes e barcos de pesca, estes sempre mais próximos do continente, e longe da rota dos navios.
Velejando
A segunda noite foi um pouco mais chata, porque as ondas vindas de leste balançavam o barco, que estava velejando com vento de ENE, alheta. Ao amanhecer do dia 11, o vento e as ondas rondaram para NE. Com a mudança de rumo, para aproximar lentamente de Salvador, ficamos em popa rasa. Montei o velame em asa de pombo usando o pau do balão, e assim fomos, durante 8 horas, estáveis, até perto de Salvador. Chegamos no Tenab às 18:30 hs.
A previsão se confirmou durante toda a viagem, velejamos desde a saída do porto até que o vento baixou para 5 nós próximo à Ponta Itapuãzinho, bem perto de Salvador. Chegamos no Tenab com ajuda de motor. Fizemos 370 milhas em 57 horas e 15 minutos, média de 6,4 nós.
O relato acima parece com muitos outros que já fiz desde que saímos de Ilha Grande, mas a viagem foi marcante e diferente. Foi uma velejada tão tranquila que, quando deixava o meu turno, não levava mais que 5 minutos para dormir, e não enjoei.
Acho que a grande diferença é que, embora pequeno, fizemos um circulo, saímos de Salvador e para cá voltamos, só que está tudo diferente. Os amigos que fiz no Tenab aqui não mais estão: os estrangeiros já estão no Caribe, os brasileiros que vieram para a Refeno já voltaram para o Sul, e está tudo vazio porque, com a chegada da Mini-Transat, o Tenab foi esvaziado para recebê-los e, dizem, o povo ainda não voltou. Não sei não, porque eles subiram o preço de R$ 0,60 por pé, por dia, para R$ 1,00. O rebojo também não é o mesmo, só aparece na maré cheia e é bem leve.
Fora os poucos remanescentes da Mini-Transat, há um catamarã, 41 pés, com um casal de franceses (claro) que ontem saíram para Mangue Seco (um pouco ao norte de Salvador) na companhia de um casal de brasileiros, que os ajudaria a entrar. Quando nos falamos, comentei que o vento seria NE, mas ele contava com uma informação de que um vento local E surgiria à tarde. Saíram cedo.
Farol-da-Barra
Hoje de manhã, vi o catamarã de volta e fui saber o que ocorreu. Eles disseram que o vento continuou NE, que fizeram 8 milhas em 8 horas e, então, desistiram e voltaram. Impressionante a determinação deles, preferem brigar contra o vento, e até voltar, mas não vão no motor de jeito nenhum. Acho que eu preferiria não perder o passeio mesmo que custasse um pouco de diesel.
Salvador é a mesma, as pessoas sorriem, as crianças não ficam chorando e batendo os pés pedindo coisas, os adultos raramente brigam ou agridem as crianças, e os velhos são respeitados. Claro que existem exceções para o que acabo de escrever, assim como, nem todas as mulheres estão vestidas de verde, mais muitas estão.
O cais Cairú também está do mesmo jeito, as escunas vão e voltam, os pesqueiros continuam se ajeitando entre as lanchas dos práticos do porto e os barcos que fazem transporte da tripulação de navios fundeados no meio da baia.
Há um píer novo, flutuante, na Capitania dos Portos. Os apitos ainda soam anunciando as fainas e o alvorecer. Carros com som potente continuam, no meio das madrugadas de sexta e sábado, tocando alto musicas de gosto duvidoso, no posto de gasolina. Prostitutas rondam o Mercado Modelo à noite.
O Luthier tem três tanques d’água, dois debaixo dos sofás da dinete e um debaixo da cama de popa. A alimentação do tanque de bombordo, da dinete, é feita por uma conexão com o tanque de popa. Depois desse passeio até Fernando de Noronha, iniciou-se um pequeno vazamento na flange, onde está uma válvula para controle do transbordo do tanque de popa para o da dinete. Gosto de arrumar logo esses pequenos problemas, antes que eles cresçam.
Simples, basta esvaziar o tanque, tirar todos os sapatos do paiol onde está a flange com vazamento, abrir a caixa de ferramentas sobre o sofá da dinete, desmontar a flange, limpar todos os resíduos de vedante etc.
Voltamos etc., montar, etc.. A bagunça é inevitável, e quem já usou Sikaflex sabe a meleca que é. Mesmo que você não suje nada, nem o “shortinho”, ponha tudo de volta no lugar, que o reparo fique perfeito, não há mulher a bordo que não estresse com isso. A Catarina não é exceção.
Mas o que tem que ser feito tem que ser feito. O duro é você comprar, em uma famosa loja náutica, uma peça para fazer manutenção, aumentar o conforto a bordo, ou até mesmo uma inutilidade sonhada, e o vendedor garantir que entrega em uma data, e não o faz. Paguei um extra para que a mercadoria viesse pelos Correios.  Pedi o número do conhecimento e o informado não é um número de rastreamento de SEDEX, não tem 13 caracteres.
Durante a construção do Luthier isso aconteceu muitas vezes, mas eu não me acostumo e não aceito mais isso. Se a mercadoria não chegar amanhã, vou virar executivo paulista e deixar de ser cruzeirista paciente. Depois eu conto como foi essa.
Gosto de Salvador. Aqui eu me sinto em casa.

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Versão da Catarina

A previsão de mar para a saída de Cabedelo, no dia 03/11, não era das melhores, com ondas de 2,5 metros, picos de 3 metros, com 14 segundos, mas não chegava a ser perigosa. Pesou na nossa decisão de sair o compromisso que temos em Salvador, em novembro, e o desejo de, antes, conhecer Suape, em Pernambuco.
O desconforto do vento e mar de proa, para abrir algumas milhas da Costa, e para vencer o Cabo Branco, se fizeram sentir logo nas primeiras 4 horas de navegação, com toda a tripulação enjoada. Nada a reclamar, sabíamos da bordoada.
Na chegada a Suape, no início da manhã do dia seguinte, já próximo ao Cabo de Santo Agostinho, outra pauleira, com o mar alto, e desencontrado. Chegamos inteiros, tripulação e barco. Ancoradouro em Suape
Por várias vezes, durante a viagem, o serviço de rádio da Embratel informou a ocorrência de “homem ao mar”, nas proximidades de Olinda, no dia 29/10; pedia a assistência de quem o localizasse. Nota triste.
A entrada em Suape foi por etapas, porque o local está bastante assoreado, e não há levantamento batimétrico da Marinha. Na chegada, ancoramos próximos ao Porto, para esperar a maré enchente. Quando ela chegou, avançamos bem próximos à barreira de corais, seguindo os “waypoints” do pessoal de Pernambuco; impressionante aquelas ondas quebrando nos corais, ali, do nosso lado. Então, foi um tal de seguir para boreste, intercalando com bombordo, para chegar a um ponto final indicado. E agora? O ponto final sugerido é no meio do canal, nada abrigado, sujeito à toda correnteza do rio. Seguimos um pouco mais, para um local onde havia 2 veleiros e PÁ, batemos em alguma coisa. Foi de leve, e continuamos. Achamos um local com profundidade de mais de 3 metros; parecia bom, descontando a maré.
A ancoragem escolhida parecia boa, mas viemos a saber que não era: perto das dez da noite, daquele mesmo dia, fomos acordados pelo movimento do barco, adernando para bombordo. Socorro! Começou com dez graus e, à medida que a maré baixava, ia adernando mais, alcançando os 28º. O que fazer? Nada, não havia nada a fazer, só esperar a maré subir, apoiando-se no outro bordo. Eu chorei, porque achava que, com o peso do mastro, o barco ia emborcar de vez. O Dorival me garantiu que não, mas ficava aquela impressão de coisas anormais acontecendo. Pedi a todos os santos, inclusive, pensei em fazer um promessa. Lembrei do meu pai: “Promessa é barganha com o santo!” Mas vale tudo, nessas horas. As horas foram passando, eu vi que nada acontecia de mais grave, então, me apoiei como pude para tirar um cochilo, até o barco voltar ao normal. Passado o susto, vou pagar a promessa, quando chegar na Bahia.Praia Paraíso
No dia seguinte, saímos às 6 da manhã para ancorar em outro ponto, dessa vez, estudando minuciosamente o giro do barco. Achávamos que, naquele dia, íamos ter uma noite restauradora; ledo engano! Próximo à meia noite, com o vento de 30 nós que soprava, soou o alarme do GPS: a âncora tinha garrado. Menos mal que a nova posição era ainda mais profunda! Novamente, nada a fazer. Fomos dormir, e nada aconteceu, digo, não encalhamos. Restaram as emoções.
O lugar ainda está bonito, apesar da construção do Porto, que enfeia a paisagem, e das demais construções previstas para a área, como a de um estaleiro. A curta faixa de praia é de uma areia clara, finíssima, e para dentro do rio ainda há mangue. Não há abrigo para o vento que vem do mar, de leste, e a correnteza do rio é muito forte.
Aqui, estamos filados ao vento, e não passamos calor. Nem chegam os pernilongos. Gosto dessa vida mais selvagem. Não há marinas, temos que sobreviver com a água disponível, e com nossa energia. Estamos sozinhos, mais ninguém na ancoragem, inclusive, no final de semana.
Para enfrentar a viagem de 3 dias até Salvador, nada melhor que andar bastante. Então, fomos caminhar até a ponta do Cabo de Santo Agostinho, onde está o que sobrou de um Forte, o Castelo do Mar. No percurso, encontramos um rapaz que pesca na praia, com quem tínhamos conversado no dia anterior. Ele foi, de boa-vontade, nos mostrar as trilhas da região, fazendo perguntas sobre pesca para o Dorival, achando que ele é um “expert” no assunto; não adiantou eu falar que ele não pesca nada. Por fim, o Dorival montou um destorcedor na linha de pesca do cara, para ajudar com a isca artificial. Ai dele, se herdar nossa sorte na pescaria!
O rapaz é um caso típico daqui: pescador nas horas extras, e trabalhador de uma das fábricas da região, nas demais. Natural de São Paulo, ele oscila entre o “meu, assim….” e “pronto”, para explicar alguma coisa, um deslocado na vida, como nós.
O topo do morro, onde está o Cabo, sofre problemas de erosão, com muitas crateras. E Porto e Ilha dos Francesespensar que em 1498, quando Vicente Yañes Pinzon teria aqui aportado, era tudo mata, povoada por índios.
Fomos por uma estrada arborizada, com muitos cajueiros e mangueiras, atrás de um doce de caju-passa, indicado por formigas humanas. O doce é bom, mas a cocada de colher, e a pasta de amendoim da doceira são demais, não ficam atrás.
Estamos descansando e nos preparando para ir direto para Salvador, agora, com previsão de ondas de menos de 2 metros.
Vou ficar com saudades do queijo de coalho, da tapioca, do caju doce, e do povo alegre daqui. Mas também estou com saudades da Bahia, do perfume na entrada da Baía de Todos os Santos, das festas, do colorido, do sorriso aberto das pessoas. Ainda é bom viajar pelo Brasil. Aqui me despeço. Até Salvador.

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Versão do Dorival

Em Cabedelo estava quente, muito quente. Um dos problemas quando se está parado em um cais é que “sempre” o vento sopra de lado e não circula no interior do barco. Os 35ºC dentro do barco estavam tirando a Catarina do sério. Foi quando percebemos uma pequena janela de previsão do tempo que indicava ventos de E e ondas de 2,5 metros longas, com 12 a 15 segundos de período, supostamente vindas de NNE. Parecia tentador, porque poderíamos adiantar a viagem para Salvador indo até Suape, onde ficaríamos ancorados e filados ao vento.
Planejamos a saída para dia 3 de novembro. Na noite anterior, chegou na marina um veleiro de 43 pés novinho, vindo da Europa, com tripulação brasileira e um italiano. Perguntei do mar e eles disseram que estava alto, mas com ondas longas, sem problema algum.
Às 11:00 horas, saímos do cais da marina do francês, em Cabedelo. A barra
Barreira de Coral do Rio Paraíba já mostrava ondas altas, mas nada que pudesse ser problema para o Luthier. Logo que passamos a última bóia do canal, adotei um rumo SSE, uma orça apertada com 25º de vento aparente. Seguimos com a mestra no primeiro rizo e ajuda do motor. Passamos próximos ao Cabo Branco e depois fomos nos afastando da costa até ficarmos 15 milhas distante, bem longe da área de pesca, porém, antes das rotas dos navios. Mudei o rumo para um pouco mais ao sul e, com isso, a orça ficou mais folgada. O Luthier adernou um pouco mais.
Foi a primeira vez que, com motor ligado, tínhamos sotavento a boreste, e as ondas vinham de SE, e não de NNE, como previsto. Nesse caso, a saída do motor ficou permanentemente debaixo d’água, alterando o som. Fiquei preocupado, e resolvi entrar no barco para verificar se tudo estava em ordem; estava, mas, ficar olhando para baixo, fixando os olhos em filtros de entrada d’água e no motor, foi fatal: com mar de 3 metros, enjoei mesmo. A Catarina, que já não vinha muito bem, logo ficou ruim também.
O mar, apesar de alto, tinha ondas com período de 12 segundos ou mais. O Luthier não caturrava, e não houve um episódio sequer de onda sobre o convés. O problema, na minha opinião, foi forçar a orça com ondas nas amuras. O balanço do barco, e a forma como o vento sai da vela, fez um cheiro forte de diesel queimado entrar no barco, o que para mim é o suficiente (já verifiquei com o barco ancorado, e o motor não tem escape de gases no interior). Tenho que evitar essa situação, do mesmo jeito que evito navegar a motor com vento aparente zero. Pode estar um mar liso, fico mal com o cheiro do diesel.
Logo depois, o vento foi para E, desliguei o motor, abri toda a genoa e velejamos tranquilos, a noite toda. Apesar do enjôo instalado em mim e na Catarina, passamos bem a noite. Velejando, o Luthier balança menos
Forte Castelo do Mar, e o motor desligado é um tremendo alívio para o nariz e os ouvidos. 
Próximos a Suape, mudei o rumo para fazer a aproximação do porto, as ondas que estavam de través passaram a quase popa, e o vento, de alheta, nos levava a 7 nós. À medida que nos aproximávamos de terra, a altura das ondas aumentava e o período encurtava, efeito da proximidade do Porto com o Cabo de Santo Agostinho. A três milhas do Porto, tive que abaixar todos os panos e ligar o motor, segurando o Luthier a 4 nós para não surfar. Depois de passar o molhe e entrar no Porto interno, resolvi ancorar o barco para aguardar a próxima maré alta, antes de entrar no ancoradouro final.
À tarde, com a maré faltando 0,5 metro para encher, rumamos para a ancoragem em frente a um Resort. Usando 18 waypoints, passamos tranquilos pelo canal que fica muito próximo aos recifes. Vinte metros após o ultimo waypoint, raspamos em uma pedra. O Luthier deu um leve tranco, isso deve ter feito um pequeno dano na pintura da quilha.
Ancorei com 4 metros de profundidade. Como a maré aqui é de dois metros, e o Luthier cala 1,6 metros, achei que estava bom. Porém, com o giro do barco, na maré baixa ficamos em cima de um pequeno banco de areia que existe no meio do rio. O resultado foi que acordei às 9:40 hs da noite com o barco adernado 10º para bombordo, e a maré baixa seria às 22:49 hs. O Luthier chegou a adernar 28º. Na manhã seguinte, com maré alta, mudamos para um local com 5 metros de profundidade na maré cheia.
Praia próxima a Suape
Navegantes que estiveram por aqui, quando o porto estava iniciando atividades, e recentemente, dizem que a paisagem mudou muito. Nunca estive aqui antes e, por isso, estou achando tudo muito bonito. É muito interessante como a barreira de corais é praticamente reta desde a passagem norte, junto à ponta sul do Cabo de Santo Agostinho, até a entrada do porto de dentro.
A cidade de Suape e as praias estão bastante limpas, talvez porque estejamos fora da estação, que aqui começa em janeiro.
É uma pena que a margem sul do Rio Massangana terá sua paisagem muito modificada com a construção de uma refinaria.
Logo seguiremos direto para Salvador, estou com saudades de lá, de um bom acarajé, das frutas compradas nas ruas do comércio, das escunas e do Cais Cairú, onde fica o Terminal Náutico da Bahia – TENAB.

 

 

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Versão da Catarina

Quem manda em nós é o tempo: decide quando vamos partir, o que vamos fazer no dia, se vamos ter que poupar energia, etc… Ficamos totalmente dependentes de suas condições.
Estamos esperando uma janela de tempo para seguir viagem até Salvador; o mar lá fora resolveu engrossar e há previsão de chuva, muita chuva, no destino. Casa do Artista Popular 3
Nunca falta o que fazer: lavar o barco, lavar roupa, fazer supermercado, guardar compras, manutenções, e todas as outras tarefas, de uma lista interminável. Fizemos uma parte delas no sábado e domingo passados, afinal, tanto faz o dia da semana.
Nada a reclamar por esperar pela condição de mar e chuva aqui, em Cabedelo, afora o calor que passamos dentro do barco; justamente por ser um lugar muito abrigado, venta menos e não estamos filados ao vento, fato que prejudica a ventilação.
Nunca ficamos sozinhos, tem sempre um agito na marina, ou um convite de amigos daqui.
Dias desses, fomos convidados para um happy-hour no barco de um casal de franceses, chamaram a todos os que ajudaram na atracação do barco. Reunião diferente: falava um por vez, em voz baixa, os outros todos só prestavam atenção. Perguntei se as reuniões entre eles eram sempre assim, e disseram que dependia do nível social das pessoas; não tinha pensado nisso, mas faz sentido. Teve mesa farta, de comida e de bebida; a toda hora passava uma rodada de pizza. Casa do Artista Popular 2
Uma outra reunião, desta vez, na Marina, foi para a despedida do pessoal de um catamarã, que segue para a França. Nosso vizinho francês fez uma apresentação de malabarismo e depois, uma animação com a tripulação de saída, tudo engraçado. Ele é, realmente, um palhaço, profissional. E um bom vizinho: educado, sempre de bom humor, não faz bagunça, nem barulho. Viveu dias de ansiedade, com a venda do barco para um outro francês, que resolveu se instalar a bordo, para avaliar melhor as suas condições (que mala!), mas deu tudo certo, e ele agora vai para a Argentina, buscar um barco maior, desta vez, com banheiro. Quem parece que não gostou nada da saída dele daqui foi sua gata: estava acostumada com o lugar, vinha dormir nos outros barcos, inclusive, no nosso, e às vésperas de sua saída estava agitada, miava para nós, vinha se esfregar. Como é que esses bichos sabem o que vai acontecer? O porco também percebe, chora a noite toda, às vésperas de ir para a panela.
Mas que tempo maluco é esse? No sudeste chove de montão, e também em Salvador, fato inusitado para a época. Aqui, dizem que parou de chover muito cedo. Devem ser as mudanças climáticas anunciadas, além do “El Niño”.
Nesse meio tempo, fomos conhecer os prédios históricos e turísticos do centro de João Pessoa. Gostei muito da exposição da Casa do Artista Popular, com o artesanato da Paraíba, não aquele semi-industrializado, dos mercados populares: são esculturas em madeira e pedra, experiências com cerâmica, bonecas estilizadas, bordados, e peças com uso de um algodão colorido, plantado aqui. O lugar tem uma iluminação perfeita, que valoriza as obras, com paredes trabalhadas contendo espaços para exposição, e tudo limpo, sem aquele pó por cima das peças, que em muitos museus ninguém lembra de limpar, passar um pincel. Um lugar realmente preparado para receber o que há de melhor da expressão do povo, e que, dizem, projetou muitos nomes, até internacionalmente.
Na capital, João Pessoa, rola um papo que deveria haver uma mudança no nome da cidade, que não seria certo uma capital portar o nome de um governante, por mais importante que este tenha sido. Há vários nomes candidatos, inclusive, Cabo Branco, o mais a leste do Brasil. Por mim, esse último seria o mais adequado, por ser um ponto geográfico de relevância, e por ser impessoal, fato que agradaria a gregos e paraibanos.Cidade baixa rios e manguezais Pensando bem, se o nome um dia escolhido foi o de um político, é porque essa é a cara do lugar, assim… “politizado”, com muitos servidores públicos, e talvez esse seja o nome mais adequado para ele.
Quem sou eu, para opinar? Uma legítima paulista, do interiOR, sem direito a nada, é fato . Mas, quem sabe, um dia, talvez eu venha morar aqui, por ser uma cidade tranquila, com muita área verde, parques tombados, um marzão no quintal, ideal para uma aposentadoria. E o povo é cordato: as pessoas na rua e no comércio são solícitas, sempre sorridentes. Já há notícias de alguma violência, trazida pelo avanço do crack, mas isso está para todo o lado.
Para morar aqui eu teria que incorporar o “pronto” no meu vocabulário, usá-lo o tempo todo, com várias funções. Veja bem, “pronto” não é exatamente alguma coisa concluída, terminada, é simplesmente, “tá bom”, “ok”, “entendi”. Se você diz a um vendedor que está só olhando a mercadoria, ele diz, “pronto”, e se afasta. Se você pede uma informação, o informante começa explicando com “pronto”, e termina com ele. É pronto prá tudo.
Um amigo daqui nos disse que somos ciganos, não fixamos raízes. Pela primeira vez fui chamada assim, bem eu, que fujo daquelas mulheres que querem ler a sorte. Fixamos o ferro, sim, mas na água; se assim não fosse, você sabe, o barco iria embora. Acho que mais vale o contato espontâneo, ainda que por pouco tempo, entre pessoas que têm um interesse em comum, pelo mar, que o contato maçante com uma pessoa com quem você simplesmente convive, por necessidade ou conveniência. Casa do Artista Popular 1
Não precisamos morar no mesmo bairro, para nos querermos bem.  E como é bom nos encontrarmos, que seja de vez em quando, para jogar aquela conversa fora, inútil mesmo, sobre barcos fantasmas procurando tesouros escondidos, ou sobre lugares belos, que nunca fomos. Desses bons momentos é que é feita a vida, e é assim que é bom passar o tempo. O nosso tempo finito neste mundo.
Como diria o caipira do interior de São Paulo: tremendo vento “bão” para “oceis” todos!

 

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Versão do Dorival

Cabedelo fica em uma estreita faixa de terra espremida entre o mar e o Rio Paraíba. Há supermercados, padarias, restaurantes e um caminhão que vende abacaxis, picados e gelados, muito bons, na rua da praia.
Rio Paraiba e SanhauaEstamos em uma marina na Praia do Jacaré, que fica em Cabedelo. É uma praia fluvial, no Rio Paraíba. A marina não oferece nada de especial, não tem apoio na atracação e os cabos das poitas não estão bem mantidos.  O preço é alto, mais caro que do TENAB e do Cabanga, e não oferece a mesma estrutura. Acho que é a falta de concorrência porque uma outra marina que havia foi a leilão, está sob júdice, e as outras marinas só atendem à lanchas. Aqui, a grande maioria dos veleiros pertence a franceses. Um deles, do barco ao lado do Luthier, o vermelhinho da foto, é um artista de circo; ele faz malabarismos, magia e brincadeiras bem engraçadas. O cara é bom mesmo, faz o maior sucesso. A mulher dele está grávida do segundo filho e, por isso, ele comprou um veleiro maior, 40 pés, na Argentina. Vendeu o vermelhinho para um francês, que veio de Paris para olhar o barco, velejar um pouco e negociar a compra. Ele me contou que consegue vender bem os shows dele em Paris e em Buenos Aires. Como precisa de lugares abertos para se apresentar, só pode trabalhar no verão. Com as duas opções, Paris e Buenos Aires, pode trabalhar o ano todo. Ainda vou entender esse mercado de europeu comprando veleiros na Argentina.Vermelhinho
Um outro, é um catamarã que estava alugado para uma empresa de charter nas Ilhas Seychelles. Quatro tripulantes, franceses, trouxeram o barco até Cabedelo para trocar a vela mestra, que se despedaçou na costa da África. Aqui, esperaram uma vela nova vir da Argentina. Dois deles eram mergulhadores militares que participaram de um famoso resgate de reféns na Líbia. Um deles ficou com alguma seqüela mental. O inglês deles é muito engraçado o que rendeu algumas piadas de ambos os lados. Saíram dia 27 de outubro para cruzar o Atlântico em direção a Cabo Verde. É uma tripulação profissional e, acho que por isso, ficaram interessados em falar comigo, pelo SSB. Combinei dois horários, 9:00 e 21:00 horas UTC, porque 30 minutos mais tarde falo com um veleiro de uns amigos suíços, que estão indo para Trinidad Tobago. Esse suíço é aquele que eu ajudei a arrumar a antena, apenas dizendo o que ele tinha que fazer. Em 4 anos no mar, ele nunca tinha falado com alguém no rádio SSB, depois disso, falamos todos os dias, e ele fica chateado quando a propagação não permite uma boa comunicação.
Perguntaram-me sobre a violência em Cabedelo. Desde o evento de um assalto à mão armada a um veleiro tipo escuna de Ilha Bela, e o roubo de eletrônicos de um outro abandonado ancorado, não houve nenhum novo caso.
Franceses contam que, em Cabo Verde, um deles teve dois painéis solares roubados, e o outro, o motor do bote. Já escutei muitas histórias sobre Cabo Verde; os viajantes que aqui chegam, em geral, não gostam de lá. Como em qualquer outro lugar, não se pode descuidar.
A Constituição do Estado da Paraíba proíbe a edificação de prédios com mais de 3 andares nas primeiras ruas junto à orla. Com isso, a paisagem nas praias de Cabedelo e João Pessoa é muito agradável; a preservação das árvores e da vegetação rasteira segura a areia, e evita a erosão. Em João Pessoa tem muitas mangueiras, cajueiros e jambeiros nas calçadas. Os manguezais nos rios que cortam a cidade ainda estão razoavelmente preservados.
Igreja de Sao Francisco
A cidade de João Pessoa nasceu junto ao rio. A ocupação da orla marítima, antes usada apenas para veraneio, é coisa recente. A disputa entre grupos políticos da cidade, e de Campina Grande, é muito acirrada. Há até uma certa discussão envolvendo o nome da cidade, porque é a única capital do país que leva o nome de um político. O centro velho está bem cuidado, com alguns prédios restaurados e outros em obras.
A cidade é limpa. Moradores dizem que é porque a prefeitura sempre limpa, e que o povo joga lixo na rua. Não foi o que eu vi, a maioria das pessoas jogam lixo na lixeira. O sistema de esgoto é bom, as praias são próprias para banho, o ano todo. Ainda existem ligações clandestinas jogando esgoto no rio.
A cidade é quente, e parado no píer, sem vento, me dá vontade de ter ar condicionado no barco. Não sei como vou fazer, mas vou ter um. Andei me descuidando e voltei a engordar 3 quilos; estou de dieta. A Catarina me fez comer picadinho de carne com CHUCHU. Odeio CHUCHU. Não entendo como é que a natureza conseguiu com 10% de material orgânico estragar 90% de água. Dessa vez fiz uma reclamação mais séria e ela prometeu que não vai mais fazer CHUCHU.
Assim que o mar acalmar e o vento ajudar, vamos para Suape, e depois, para Salvador.

 

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Versão da Catarina

Em Natal/RN, pudemos descansar da viagem de volta de Fernando de Noronha, ancorados no Rio Potengi. Lá, éramos brindados por um vento constante, que aliviava o calor. A correnteza no rio é animal, na maré vazante parecia que estávamos navegando, com tanta água passando pelo casco, transportando folhas das margens a cerca de 5 nós.Ponte de Natal
Muitas vezes, acordávamos, logo ao amanhecer do dia, com um FÓÓÓÓÓÓ: a buzina dos navios rumo ao Porto, anunciando manobras, passando a menos de 200 metros dos barcos ancorados. Cada monstro, digo máquinas incríveis, e suas equipes monstruosas! Por baixo d’água, ecoava o barulho dos hélices, antes mesmo da passagem do navio. O movimento do porto é grande, não é pouca coisa que se transporta pelo mar, saindo dali.
O Iate Clube de Natal oferece apoio aos navegantes com instalações de banheiros, restaurante, água e diesel, e nas redondezas há um bairro com pequenos supermercados, padarias, peixaria e comércio local.
Por conta das longas distâncias para acesso às praias da orla, aos prédios históricos, e a outros pontos turísticos, dividimos uma condução com um casal de espanhóis de um catamarã, ancorado ao nosso lado, e fomos conhecer um pouco da cidade. Na Praia de Ponta Negra avista-se uma duna, tombada pelos órgão ambientais, e há hotéis e pousadas à beira-mar; no caminho da orla, algumas outras dunas, que ainda estão tombadas, com vegetação rasteira e alguns cactos. Tivemos muito assédio de vendedores e repentistas na Praia de Jenipabú, alguns deles inconvenientes. Uma das atrações selecionadas por nosso guia foi um cajueiro que ocupa uma grande extensão de área; o motorista disse, no entanto, que o caju ali vendido hoje vem do Estado de Minas Gerais, que o de Natal é menor, mais amarelado, e ainda não estava na época de frutificar.
catarina e o cajueiro
Uma ocasião, foi mais fácil para os espanhóis entenderem o que o motorista falava, que nós próprios. Ele disse que em Natal era preciso “arengar” com os vendedores, que significa “brigar”, pechinchar, negociar o preço, tendo o mesmo sentido em espanhol.
Esse casal de espanhóis nos disse que comprou o barco faz pouco tempo, e mudou seu nome original, prática que eles sabem ser condenada, pois pode trazer má sorte. Para driblar o eventual azar, deixaram um tapete que traz o antigo nome, e deram algumas voltas ao redor dele, antes de usá-lo. Parece até um ritual indígena mas, quem não tem superstição? O comandante do Acauã nos contou que, durante uma expedição com 4 pequenos catamarãs, ao tirar a foto antes da partida, colocou a mão, inadvertidamente, na bunda de uma estátua de Netuno, e que não deu outra, o “desrespeito” resultou na quebra de todos, todos os barcos. É por essas e outras que não saímos de viagem às sextas-feiras.
No dia 08/10 saímos rumo à Cabedelo/PB, após consultar as previsões, que mostravam uma pequena janela de tempo, que nos convinha. Viagem tranquila, principalmente depois de passar a Ponta Negra e a Ponta da Tabatinga, em que o mar, dizem, é costumeiramente mais calmo. Chegamos no nosso destino no raiar do dia seguinte, sentindo o perfume exalado pela terra, e com 100% de atenção para a barra do rio, por conta das várias bóias que guiam a entrada, e dos bancos de areia, todos anotados na carta náutica, algumas em posição diferente, mas informadas nos avisos aos navegantes.
Fui recebida com um “bonjour” na marina da Praia de Jacaré, enquanto passava o cabo para atracação; acho que eles não viram a bandeira do barco. Os donos são franceses, e a marina está, em sua maioria, ocupada por barcos franceses. Por sorte, uns poucos falam inglês. Barra do Potengi
A natureza das ilhas próximas ao Rio Paraíba está bastante preservada, sem construções, com muitos manguezais e pesca artesanal. As praias urbanas de Cabedelo e João Pessoa também estão incrivelmente preservadas: há uma larga faixa de areia, onde se vêem pedaços de algas e de corais, seguida por faixas de vegetação rasteira e coqueiros. As construções ficam do outro lado das avenidas principais, com prédios de poucos andares.
No dia seguinte à nossa chegada, assistimos a uma competição de Hobby Cat na praia de João Pessoa, cenário lindíssimo, tendo por fundo o plácido mar verde-limão. Terminamos o dia comendo amendoim torrado, com casca, e rubacão, uma comida típica daqui, com nossos amigos do Acauã, na sede do Iate Clube. Nesse lugar se respira vela, efetivamente: vários campeões e ex-campeões reunidos, em diversas categorias de barcos à vela.
Fizemos um passeio totalmente diferente, proporcionado pelo Joca, do Acauã: fomos de Hobby Cat do Iate Clube até as proximidades do Cabo Branco, próximo à Ponta Seixas, a mais oriental do país, primeiro lugar onde nasce o sol no Brasil. O barco parece que anda sozinho, aliás, já sai andando, como um desvairado, com qualquer ventinho. Você fica por cima de uma tela conduzindo o leme e ajustando as velas, levando jatos de água quente do mar o tempo todo. A integração com a natureza é total. Dormi como um anjinho.
Vamos ao estômago: aqui se serve feijão de fava ou o verde, com farinha de mandioca. A comida é boa e barata, com variedade de peixe e frutos do mar. Os bolos, de rolo ou aipim, as broas e as cocadas de forno são um capítulo à parte, Forte dos Reis Magos - Nataltodos deliciosos. O abacaxi e o melão são um mel só, a preços nunca vistos no sudeste. 
E agora, às letras: você sabe o que significa um homem “descuidista”? Não, não é um descuidado, mas aquele que se aproveita do descuido alheio. Já tinha ouvido falar desse sujeito na Bahia, e agora em Cabedelo/Paraíba. Um “cabra” desses está em extinção em São Paulo, por lá não esperam o descuido de alguém, não, vão logo assaltando, à mão armada. Outra: aqui sou “galega”, e se vêem muitos outros “galegos”.
Tenho que confessar, depois de alguns meses a bordo, estou ficando com umas manias: não gosto da insistência de vendedores, de produtos ou idéias, que não me interessam. Nem que queiram me obrigar a fazer o que não quero. Nem da política de grupos de pessoas. Estive olhando os meus dedos das mãos, por esses dias, e me parece que a membrana, digo, a pele, entre eles, está crescendo. Será que estou virando um bicho do mar? Livre

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Versão do Dorival

Em Natal, fomos recebidos pelo Iate Clube, que oferece aos visitantes boas poitas, localizadas em frente ao clube e a uma área pertencente ao Exército. Além da poita, também se usa o ferro para ajudar a segurar o barco durante a vazante da maré. A correnteza é muito forte.
Logo depois que se entra no rio Potengi, passa-se por baixo de uma ponte muito alta, que pode ser vista a 20 milhas da barra. A barra é sempre bastante agitada, especialmente quando sopra um SE forte.Saindo de Natal
Em Natal, visitamos o Forte dos Reis Magos, que está muito bem conservado. Já as praias da cidade, Ponta Negra e Jenipabu, estão sofrendo de ocupação desordenada, falta de árvores, e pelo avanço do mar. Um pesqueiro da Nigéria teve problemas no motor e, segundo a declaração dos tripulantes, ficaram no Atlântico à deriva até encalhar na praia de Búzios em Natal. Achei um pouco difícil de acreditar. Tiveram muita sorte (será?) porque três milhas mais ao norte e teriam batido em corais.
A saída de Natal para Cabedelo foi planejada seguindo a rotina anterior às regatas. Lá estava eu, todos os dias, olhando os diferentes sites de previsão meteorológica, me perguntando se eu sairia hoje.
Para previsão do tempo, utilizo alguns sites (Ugrib, Buoyweather, IMPE, LAMMA, etc..) e, as Cartas Sinóticas e a Meteomarinha da Marinha do Brasil. Algumas dessas fontes fornecem a previsão de vento e ondas baseadas em modelos matemáticos, já em outras, Marinha e Climatempo, há interferência de meteorologistas na elaboração das previsões.
Apesar de todas essas fontes de informação, temos ainda que ajustar nossa percepção ouvindo o pessoal local. Quando todas as fontes coincidem no resultado apresentado é fácil, o problema é quando as informações são discrepantes ou nada tem a ver com que observamos na ancoragem. Desde que saímos de Salvador as previsões têm sido certeiras.
Depois de 3 dias descansando e participando de festas, passei mais 5 dias olhando aquela previsão de mar de 2,5 metros SE, com vento de 15 nós SE estável. Orçar contra ondas é chato demais, ainda mais nessas condições.
No dia 7 de outubro, as coisas começaram a se modificar, eu via o mar lá fora mais calmo, e o vento mais fraco já rondava para E. No dia 8, amanhecemos com um vento E de 8 nós, e ondas de 1 metro, que coisa boa, resolvemos sair. Para chegar em Cabedelo de dia, calculei que devíamos sair às 13:30 hs, estimando velocidade média de 5.5 nós, levaríamos perto de 20 horas. Tomamos café da manhã, preparei o barco e fui até a marina me despedir do pessoal e anotar a saída no livro do clube.
Algumas pessoas do clube, e alguns tripulantes de veleiros visitantes, não gostaram muito da nossa “saída repentina”. Se eu desagradei alguém com isso, peço desculpas, mas o Luthier é assim mesmo, está sempre pronto para partir, não porque tenhamos pressa para chegar a algum lugar, mas se dá vontade e as condições do tempo estão boas, vamos, é só isso, puro exercício de liberdade. pesqueiro na praia de búzios
Aliás, se nós sairmos, e o mar estiver de mau humor, voltaremos. Não saímos com previsão de mar ruim e ventos desfavoráveis.
Havia previsão de vento E, 10 nós, e ondas de SE, 1,5 metros por dois dias, e mar de 2,5 metros de SE e ventos também de SE de 15 nós logo depois, durando 5 dias. Os locais e outros navegantes que conhecem a região me disseram que essas condições de mar e de vento são típicas nessa época, ou seja, pequenas janelas para descer a costa até Cabedelo. Um outro veleiro resolveu sair de Natal 3 dias depois de nós, bem no meio da previsão de ondas altas e ventos fortes vindos de SE. Além de terem uma travessia extremamente desagradável, tiveram avarias.
Saímos na hora planejada. Passada a barra do Rio Potengi, adotei um rumo SE velejando com través apertado, 30º com o vento aparente, com a mestra no primeiro rizo e ajuda do motor. O vento era fraco, 8 nós em média. O vento estava mais para ESE do que E. 10 milhas fora da foz do rio o mar já estava bom, 1 metro em média, com ondas de ESE. Seguimos assim, afastando da costa, até o anoitecer. Quando já estávamos a 20 milhas da costa, adotei um rumo paralelo a ela que nos permitiu velejar com vento aparente de 45º (o vento já estava E conforme previsto), com ondas de 1 metro, fantástico, muito confortável. Desliguei o motor e passamos a noite toda velejando a 6 nós, com a mestra no primeiro rizo e toda a genoa aberta.
Durante a noite, avistei muitos pesqueiros, todos a meu boreste, sem problemas. Luthier Catarina e Dorival em CabedeloAvistei também um navio onde as duas luzes de mastro pareciam na mesma altura, dificultando distinguir qual era de proa e qual de popa e não era possível avistar as luzes de navegação.
Nosso rumo era de colisão, mas estávamos distantes ainda. O céu estava limpo, e a lua iluminava tudo, e por isso, o radar estava desligado. Liguei o radar, marquei a posição dele, e verifiquei novamente depois de 6 minutos. Com isso, pude determinar o rumo e velocidade do navio. Decidi por mudar o meu rumo 2º para boreste, o suficiente para passar sem problemas pela popa dele. Só pude avistar as luzes de navegação quando estava a uma milha do navio.
Quase no través de Cabedelo, mudei o rumo para seguir direto para a bóia 2 do canal de entrada do porto. Navegamos mais rápido que o previsto. Com vento de alheta, reduzi os panos para fazer a aproximação a 4 nós e chegar na bóia com luz do dia. Chegamos tranquilos na Praia do Jacaré em Cabedelo. Estamos no cais de uma marina que pertence a um francês.

Clique aqui para conhecer a história do veleiro Luthier e sua tripulação

 

Normalmente, não fazemos referência a nomes de pessoas e de barcos envolvidos nas nossas estórias. É uma forma de respeito à privacidade deles sem perder nossa liberdade para escrever porque, se a minha versão e a da Catarina muitas vezes não coincidem, é provável que nossas impressões não sejam as mesmas dos envolvidos nos relatos.
Excepcionalmente, e devido à natureza do ocorrido, conversei com a tripulação do Acauã, que me autorizou a citar o nome do barco, e deles próprios, neste relato.
Acauã é o trimarã da Paraíba que ajudamos a atracar no Cabanga, cuja tripulação me deu as dicas da regata para Noronha (REFENO) e que me alertou, quando estava a leste da linha, para acertar o rumo.
Conversei com o Savigny, comandante do Acauã, com o Joca e o Igor, tripulantes (Igor é o falador), querendo saber como tudo aconteceu. Eles pouco lembram do momento. Relataram que, a cerca de 20 milhas de Cabedelo, uma rajada de vento, mais duas ondas altas seguidas, simplesmente, e inevitavelmente, fizeram o Acauã capotar. Quem já sofreu um acidente de carro, ou mesmo uma queda da bicicleta, sabe bem como é difícil lembrar exatamente as circunstâncias do ocorrido. De fato, pouca diferença isso faz. O que vem depois é o que realmente importa.
O Savigny fez um corte no nariz, o Joca e o Igor não se feriram. O Savigny conseguiu recuperar um localizador pessoal, que funciona como um EPIRB: ele transmite a posição obtida por um GPS interno e, se comandado, manda uma mensagem de “tudo bem”, “emergência”, ou pedido de “resgate”, conforme o botão acionado. Um sinal de resgate (911) foi transmitido. O Igor mergulhou algumas vezes e recuperou um rádio portátil, 12 litros de água e alguma comida, além da caixa de primeiros socorros, e os fogos.
Uma das lonas que ficava entre a cabine central e uma das bananas do trimarã foi rasgada para livrar o bote, que já estava com seu fundo rasgado, e os estais foram cortados para que o mastro se soltasse do barco porque, estando debaixo da água, poderia perfurar o casco, complicando as coisas.
O Acauã emborcado permaneceu flutuando, abrigando sobre o casco central os dois tripulantes e o seu comandante. Um sinal de socorro foi transmitido pelo rádio para Cabedelo Rádio, uma estação de comunicações móveis marítimas, operada pela Embratel.
Contando com a posição atualizada pelo localizador pessoal, os navios da Marinha iniciaram a navegação para resgatar nossos amigos. O mar estava ruim, os navios não podiam se deslocar a mais de 12 nós.
Antes de anoitecer um helicóptero passou sobre o Acauã, e um navio passou ao seu lado. Foram lançados os fogos, mas ninguém os avistou.
Anoiteceu, e as coisas começaram a ficar mais difíceis.
Como a Marinha tinha a posição deles, os navios se aproximaram o suficiente para que a tripulação do Acauã avistasse os navios, mas os navios não podiam localizá-los porque estavam no nível do mar, e as ondas encobriam as únicas luzes de que dispunham.
Segundo a Marinha, depois que Navio Patrulha Guaíba seguiu erradamente uma luz que era de um pesqueiro, o capitão do Rebocador de Alto Mar Triunfo decidiu apagar completamente os navios e mandou acender um facho direcional, piscando. Esse facho foi sendo rodado até que a tripulação do Acauã os visse. Dessa forma, o Triunfo pôde determinar a rota a seguir, tudo isso coordenado pela comunicação via rádio VHF. A importância fundamental disso deve-se ao fato de que o navio precisa de meia milha para parar, e tem que fazer isso próximo o suficiente para mandar um bote de regate e, é claro, somente depois de avistá-los. Assim foi até que foram localizados e resgatados. O Acauã não resistiu ao reboque e se desintegrou.
O sucesso do resgate deveu-se à habilidade e dedicação da tripulação dos navios da Marinha, e ao conhecimento e experiência de mar da tripulação do Acauã. Somado a isso, estavam muito bem equipados com roupa de tempo e equipamentos de salvatagem.
Já em Cabedelo, todos bem, conversei com os tripulantes. Savigny ainda se atrapalha um pouco ao falar do Acauã, se referindo ao barco como se ele ainda existisse. Igor não consegue falar do Acauã sem encher os olhos de lágrimas. Savigny nos disse que, no Acauã, foi colocado muito mais amor que dinheiro, principalmente pelo Igor.
Amigos do Acauã: 
- um barco serve para passear, participar de regatas e até morar a bordo, mas também serve para nos abrigar. O Acauã levou vocês para passear, com ele foram bicampeões da REFENO (2008 e 2009) e, finalmente, os abrigou após um acidente. Ele soube retribuir todo o carinho que recebeu, resistiu forte, mais de 10 horas, até que vocês fossem resgatados, e se foi.
Tenho certeza que haverá outro multicasco para brincar no verão, e correr regatas. Ele também será tratado com carinho, e as lembranças do Acauã serão guardadas no coração, para sempre.
Nós estamos muito contentes por vê-los bem, e agradecemos à Marinha do Brasil e aos seus bravos marinheiros por salvaguardar a vida nessa nossa imensa Costa, e no Atlântico Sul.

Dorival

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